Fogo no cativeiro
Às vezes, quando estou distraída, acontece de sem querer eu embarcar em
determinados pensamentos como se eles fossem pequenas conduções desassistidas,
em muitos casos até sem que ninguém esteja conduzindo esses veículos, propriamente,
e nessas me deixo vagar por cenários variados dentro da minha mente, que sabe muito
bem me levar a passeios incríveis. Que são igualmente sombrios, sem dúvida, mas
ainda assim são válidos porque é sempre prazeroso poder me desbravar, ainda que
começando pela parte mais trevosa e pegajosa da minha essência. Ou seja, minha
cabeça.
Talvez já tenha acontecido com você, mas houve muitos momentos da minha
vida em que me senti refém – fosse das minhas escolhas, inclusive as
microdecisões, fosse dos próprios acontecimentos cotidianos, que no dia a dia
acabaram me levando para lugares e situações que, de outra forma, poderiam ser
completamente diferentes, caso eu fosse diferente. E me vitimizar, em qualquer
um dos casos, não apenas é muito fácil como também torna propício o embarque
nesses pensamentos que, no fim, mas no começo e no meio também, não me levam
para absolutamente lugar algum. Ou, se levam, é para locais em que não quero estar,
porque me fazem mal e me deixam pior.
É muito cansativo e desgastante viver o tempo todo me sentindo acuada, sendo
vítima de mim mesma, da minha própria vida. Porque, né?, tamo aí,
sabe-se lá até quando, e o mínimo é ter paz de espírito para poder desfrutar
dos refrescos – que existem, sabemos, e isso jamais pode se perder de vista.
Para mim, seria um enorme prazer vir aqui falar que o meu processo de
mudança foi mágico, rápido e indolor, mas dizer isso seria fraudar a realidade,
que nunca é romântica como é na minha ficção. Crescer e amadurecer é um eterno
processo de arrancar um band-aid de cima de feridas ainda não cicatrizadas enquanto a gente se machuca mais... e eu pretendo ser honesta com você da mesma
maneira que pretendo ser sempre honesta comigo: o bagulho foi loco. Ou
melhor, o bagulho ainda é, porque estamos no meio do processo.
Então, vou repetir o que disse no começo: às vezes, quando estou distraída,
acontece de sem querer eu embarcar em determinados pensamentos como se eles fossem
pequenas conduções desassistidas e agora já estou naquele estágio de conseguir
me perguntar quem é que está segurando a porra do volante e para onde estamos
indo; qual é a finalidade de pensar aquilo. Porque existe uma única pessoa no
planeta inteiro, no universo!, capaz de me alfinetar nos pontos mais certeiros,
trazendo lembranças, memórias e recordações que deveriam estar assentadas lá no
fundo do meu baú, quiçá até esquecidas completamente, e essa alguém sou eu. Mas
se quero estar bem e me sinto refém, por que me submeto a essas torturas? Por
que fico conjecturando situações que nunca vão acontecer, querendo voltar num
tempo que não se rebobina?
Não sei, hoje não vim trazer nenhuma resposta, apenas essas perguntas
para que possamos refletir juntas. Mas tenho uma teoria que quero compartilhar
com você e vou fazer isso de maneira ilustrativa.
Uma vez, um pouco antes de chegar ao fundo do poço, quando já estava na
descida, vi três balões voando no céu. Era mês de julho, talvez esse fosse o
motivo, ou talvez o tempo todo existissem milhares de balões voando quase que
ao mesmo tempo e eu que não via, vai saber. O fato é que, numa mesma tarde, num
intervalo de poucas horas, vi três balões pela varanda do meu quarto. E, na
minha excentricidade (para não dizer “maluquice”), achei que aquilo era um
sinal. Dadas as minhas condições na ocasião, era um sinal apocalíptico, de fim
do mundo, o que acabou se comprovando, pouco tempo depois, quando fiquei viúva.
Até aquele dia, dos três balões, eu nunca tinha ficado tão sem chão, tão
sem rumo, ao ponto de me sentir voando. Claro que não se tratava de nenhum voo,
exatamente, porque eu estava caindo, afinal, o fundo do poço é bem baixo, levei
um tempo para chegar lá. E sei que o que me tomou foi inédito porque jamais
tinha me sentido tão despetalada. Foi a primeira vez que experimentei um vazio
tão grande e tão forte ao ponto de me preencher daquele jeito (não sei se um
dia vou conseguir descrever e traduzir em palavras tamanho desamparo e devastação.
Fiquei desolada por anos).
De forma alguma sou especial e nem tenho o (de)mérito de viver situações
exclusivas, sei que somos todas fodidas, cada uma enfrentando sua batalha, e
quando me vi despencando daquele jeito, caindo de um abismo altíssimo, feito
das minhas próprias expectativas, em total descontrole, certa de onde acabaria
parando, não tive a pretensão de pedir ajuda. A quem se pede socorro se matamos
um leão por dia? Quem poderia me salvar, senão eu mesma?
Mas eu estava caindo, não podia me ajudar, não tinha condições de me
socorrer, era impossível. Tanto que terminei no chão, estabacada, toda
quebrada, estou até hoje juntando uns cacos ainda. E aí teve uma noite, isso foi
muito marcante e muito simbólico, que me senti muito sozinha. Estava tendo
alguma festa no meu prédio, a rua toda estava barulhenta, e mesmo assim pareceu
que não havia mais ninguém ali além de mim. Se a vida fosse um parque de
diversões transitório, e eu estivesse diante daqueles martelos que medem a
força, a sineta do ponto máximo teria tocado, alta e retumbante, naquele
momento. Fui ao ápice, cheguei no meu limite e foi nesse ponto que alguém
segurou minha mão e me acalmou. Foi assim que eu soube que não estava completamente
desamparada. E a brisa dessa história é que, naquela noite, quem segurou minha
mão fui eu mesma, daqui do “futuro”.
Sou eu quem me salvo todos os dias e isso é muito bonito ao mesmo tempo que
é bastante verdadeiro também. É como se eu estivesse pavimentando a rua por
onde caminho enquanto avanço, ladrilhando meu passeio também nas vias por onde
já passei, em cada uma das terras em que pisei, incluindo aquela que desabitou
meu coração. E sinto que progrido, mesmo que às vezes diga que não, mesmo
quando me sinto um elástico voltando ao ponto de origem toda vez que vejo um
balão.
A minha teoria é que nós somos como uma régua; somos 60 centímetros
fragmentados em vários milímetros. Cada risquinho é uma versão de nós mesmas
que vive e reverbera no tempo e no espaço. Somos o todo e somos o conjunto do
todo, que só se harmoniza quando a régua inteira está em paz. Se algum risco
eventualmente tem alguma questão, por exemplo, com balão, e se isso não for
tratado, o gatilho vai disparar lá na frente, vários centímetros adiante. Ou,
dito de outra maneira, sem resolver as questões do passado e sem curar meus
traumas, fico mais exposta às situações que me farão embarcar em determinados
pensamentos que são como pequenas conduções desassistidas que me desembocam em
lugares terríveis, horrorosos, locais que não quero mais visitar.
Agora, meu exercício contínuo tem sido observar o que estou pensando, e
se por acaso vejo que não é algo que me faz bem, simplesmente desembarco. Meus
pensamentos viraram uma espécie de carros que passam numa estrada e eu sou
aquela sentada bem de boa em cima da ponte, escolhendo qual me agrada embarcar –
às vezes, até sem compromisso e deixando só uma estrelinha no final.
Chega de ser refém. Taquei fogo no meu cativeiro.
Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.
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