Fim da linha (conto)
(este suspense não é recomendado para pessoas sensíveis)
Naquela manhã gelada de terça-feira, junto com a
chuva que chegou de fininho e sorrateira, sujando as ruas e criando poças de
lama nas calçadas, Hildegard von Bigen acordou no susto, após um espasmo forte
e involuntário que chacoalhou e estremeceu seu corpo todo. O arrepio, que
lambeu a pele dos pés ao couro cabeludo, eriçando o cabelo da nuca, a despertou
mergulhada no mais puro estado de alerta.
Sentia que havia toda uma gama de riscos que a
colocavam em perigo, como se o inimigo estivesse à espreita, de olho nela, só
aguardando o momento certo para dar o bote. Por causa disso, fazia tempo que
não conseguia dormir direito; o corpo pesava, mas a mente não baixava a guarda
e nem cedia, o que a fez amanhecer meio de lado, com o pescoço doendo, após ter
cochilado de mal jeito – um claro indício do cansaço que a abatia: sucumbiu de uma
maneira que nem viu.
Sem mover um único músculo para não chamar a atenção
de ninguém, abriu os olhos encarando o teto cinza acima de sua cabeça, com certa
dificuldade para conseguir se lembrar do pesadelo que a havia levado até ali, há
cerca de uma semana. Seus pensamentos estavam confusos pelo sono, por todas as
noites mal dormidas, e Hildegard levou alguns segundos até retomar o juízo,
entorpecido pela mais profunda exaustão. O esgotamento dava a impressão de
trançar boa parte de seu corpo físico enquanto embaralhava todo o campo mental,
criando dificuldades além daquelas que já existiam, fartamente.
Alguém por perto tossiu três vezes, a trazendo em
definitivo para o momento presente. Ao despertar de verdade, Hildegard refletiu
que não passaria o resto de sua vida assim, vivendo em modo vigilante, sempre com
receio da possibilidade de sofrer algum tipo de atentado que pusesse sua vida
em risco. Precisava escapar de algum jeito, mas desconhecia métodos eficientes
para fugir da prisão.
Frustrada, sentou-se na beira da cama após dois
movimentos bastante breves, que só não foram mais ágeis devido à dor que
latejava toda a lateral direita de seu pescoço e irradiava pela cabeça, numa
enxaqueca terrível. Primeiro puxou as pernas, depois ergueu o tronco e
imediatamente sentiu a frieza e a aspereza do chão de cimento com a sola dos
pés. Não quis pensar que até recentemente não ficava descalça nem mesmo dentro
de casa, então se levantou, agarrando-se a uma das barras que a prendia dentro
da cela com outras 14 detentas, ouvindo de longe os dois joelhos estalarem, em
protesto. A verdade é que seu corpo inteiro era contrário à ideia de ela estar
ali.
No pequeno cubículo apertado e abafado, fedendo a
mofo, sem nenhuma janela, as mulheres ficavam enjauladas como podiam, parecendo
animais escorraçados do convívio da sociedade. Sem que houvesse uma acomodação minimamente
digna para todas, algumas se aglomeravam estrategicamente em um dos cantos da
cela, do lado oposto à latrina, se valendo do calor de seus corpos para se aquecerem,
uma vez que não havia a disponibilidade de cobertas. O fato de Hildegard ter um
colchão para deitar (ainda que safado, todo sujo e furado, em cima da única estrutura
de concreto que ousavam chamar de cama) era suficiente para ser rasgada por
algum objeto perfurocortante que estivesse sob a posse de absolutamente
qualquer uma de suas “colegas de quarto”/companheiras de cela. E ainda havia o
agravante de os agentes prisionais terem lhe dado um cobertor puído na noite
anterior, sem que houvesse solicitado, numa clara tentativa de a colocarem em
risco.
Dormir era um perigo, mas ficar acordada não era
exatamente sinônimo de segurança. Parecia que todas tinham algum motivo para quererem
matá-la ou lhe fazerem algum mal, o que era muito curioso considerando que
ninguém a conhecia, não de verdade. Logo, não havia quem tivesse realmente
algum pretexto para isso. Bom, não em sua concepção, é claro.
Aquela era sua primeira experiência na prisão, mas se
tinha uma coisa que Hildegard conhecia bem era a capacidade que o ser humano
tem de ser malvado e sórdido, e sentia na pele o peso do julgamento que faziam
a seu respeito. Sabia, por exemplo, que pelo menos metade da cidade faria algo de
ruim contra ela, se tivesse chance, e isso se dava em partes por conta das
diversas reportagens sensacionalistas que eram divulgadas incessantemente na
tevê. Não tinha como assistir tudo, infelizmente, devido ao encarceramento, mas
nas passagens pela delegacia pôde ouvir parte do que diziam. E a imprensa a
apresentava como um monstro, já a sentenciando a uma condenação, sem que
tivesse nenhuma chance de defesa ou um julgamento justo. Não havia consideração,
empatia, nada, nada, apenas críticas e xingamentos e impropérios de variados
tipos.
Na cadeia havia um único aparelho de televisão, bem
antigo, de 14 polegadas, localizado no refeitório, que nunca se desligava. Foi por
ali que todas as presidiárias souberam quem era Hildegard von Bigen e o que ela
havia feito para chegar até ali. E não haveria problema nenhum quanto a isso se
o caso não tivesse despertado entre a população carcerária um verdadeiro “senso
de justiça” que a colocou como o foco de todas as mazelas do mundo. De repente,
transformou-se naquele tipo de “vilã” que faz com que todas as “mocinhas”
queiram simplesmente dar um “fim”. E alguém alguma hora ia acabar conseguindo,
considerando que não havia nenhum tipo de auxílio ou proteção policial (pelo
contrário! A polícia estava contra ela). Ou seja, estava sozinha e entregue à
própria sorte. Ou esperteza.
Então, para não ser vítima de nenhum ataque, ou para
não acabar morrendo literalmente de sono, que também era um risco possível,
real e fatal, Hildegard precisava sair dali de algum jeito – de qualquer
jeito. Fugiria sabe-se lá como ou para onde; iria para qualquer lugar que
fosse bem longe e seguro o bastante para poder se proteger e se preservar.
Desolada, porém mantendo-se integralmente vigilante quanto
a qualquer movimento suspeito no ambiente, olhou à sua volta na esperança de
encontrar alguma brecha para poder escapar, mas imediatamente foi tomada por um
sincero desânimo e sentiu-se ser invadida por um profundo desalento e um
inevitável asco. A cela inteira estava afundada numa penumbra típica de começo
de dia, com os primeiros raios de sol iluminando a podridão do local, mostrando
detalhes que ela nem fazia questão de ver. Para completar a cena, terrível, os
diversos odores azedos, misturados num cheiro esquisito, fizeram suas narinas
arderem, provocando uma careta inconsciente e automática, tão logo respirou.
Além do risco iminente de se machucar em uma investida surpresa, fosse enquanto
dormia, comia ou tomava banho, viver desse jeito, parecendo um bicho, um animal
afugentado, era degradante demais. Hildegard considerou que se nada fosse feito
acabaria morrendo por um motivo indefinido, provavelmente de um jeito bem desonroso,
que depois viraria manchete por dias na televisão, mais uma vez.
Longe de ter a pretensão de ser a estrela dos
telejornais, o que Hildegard queria mesmo era se cobrir com o véu do anonimato,
bem distante das câmeras e do interesse público, e bem longe da cadeia e de
todos os elementos que lugares insalubres como esse costumam armazenar. Em
outras palavras, queria viver, que era muito diferente de simplesmente “ter sua
vida de volta”, porque isso ela sabia ser impossível. Não apenas porque agora
era famosinha, já que o país inteiro a conhecia pelos telejornais, mas
principalmente porque algo dentro dela havia se quebrado e se rompido para
sempre e não era passível de nenhum tipo de conserto ou reparo. Mas em nenhum
momento isso significava que ela tivesse a intenção de enfiar o resto de seus
dias dentro de um buraco. Ou numa prisão. Ainda lhe restava um pouco de
amor-próprio, afinal, que neste momento fazia as vezes de combustível para o seu
fragilizado instinto de sobrevivência.
Por isso, analisou como faria para conseguir escapar.
Não era, e nunca foi, uma questão de “se”, mas sim de “quando”, porque fugir era
fundamental e essencial para a manutenção e preservação de sua vida. Precisava,
portanto, de um plano que fosse bom, e rápido, e eficiente! Depois se
preocuparia com o que viria na sequência, como não ser reconhecida e
denunciada, para citar alguns dos riscos, embora já soubesse que um dos
primeiros passos lá fora seria de alguma forma alterar sua identidade. Talvez
pintaria o cabelo de azul.
Fechou os olhos ao encostar a testa na grade,
mentalizando sua mão escorregando pela trinca fria da cela, deslizando pelo
cadeado grosso enquanto o destrancava com o toque gentil do dedo, mas ainda que
adorasse acreditar em conceitos e teorias mirabolantes como o poder da atração
e outros misticismos do tipo, antes de abrir os olhos deu um suspiro que quase pareceu
uma risada, porque sabia que tudo permaneceria exatamente como estava, segundos
atrás: ela ainda estaria presa e a grade ainda estaria fechada.
Porém, ao ajustar a vista à claridade fraca do
corredor fétido, o que Hildegard viu foi a entrada do cárcere completamente
aberta. Escancarada! Na frente do gradil, um dos guardas segurava o cadeado em
volta do dedo como se fosse um anel. Sem dizer nenhuma palavra, girou o objeto
pesado algumas vezes, de um jeito ameaçador, como se pretendesse atirá-lo nela.
Com um passo para o lado, o corpulento policial deixou
a saída da cela desimpedida e fez um movimento sutil com a cabeça, quase
imperceptível, como que ordenando que Hildegard saísse dali – o que ela fez prontamente.
O som das trancas se fechando às suas costas, depois que passou, atraiu a
atenção das presas lá dentro, que rapidamente se amontoaram em cima das grades,
proferindo xingamentos e ameaças – como fazem aqueles cachorros que só latem e
se mostram valentes e ameaçadores quando estão presos por algum tipo de coleira.
Enquanto atravessou o corredor escuro e malcheiroso,
ladeado por ambos os lados de celas entupidas de transgressoras raivosas, Hildegard
ouviu uma série de insultos e afrontas vindos das presas, e também seu coração muito
agitado, batendo rápido enquanto ela analisava que este era simplesmente o
momento perfeito para escapar. Não sabia se dali seria conduzida para a sala de
interrogatórios, para um novo presídio, ao Fórum ou se iria para algum local
desconhecido, mas qualquer que fosse o destino, o fato é que teria nos próximos
passos a oportunidade ideal de fugir e a chance de se salvar.
A saleta onde interrogavam as presas não tinha nenhum
esquema de segurança, exatamente. Quando foi interrogada, Hildegard reparou que
não havia barreiras que a impedissem que simplesmente abrisse a porta e
atravessasse o caminho em direção à calçada, rumo à saída. Provavelmente o que
chamaria a atenção dos guardas seria a roupa cor de abóbora que vestia, que
entregava o fato de ser algum tipo de criminosa. Por causa disso, considerou que
teria que correr e imediatamente olhou para as alpargatas em seus pés. O
calçado teria que servir para uma prova de 100m rasos improvisada.
Mas ao invés de virar à direita no fim do corredor
sombrio, depois de todos os portões, o policial a cutucou por trás, espremendo sua
costela com a coronha do revólver. Ele a fez virar à esquerda, onde ficavam
estacionadas as viaturas e carros oficiais, e foi quando Hildegard percebeu que
seria transportada para algum lugar externo, o que ampliava muito suas
possibilidades de escapulir.
– Você tem um minuto – o policial resmungou,
liberando um hálito fedorento ao lhe entregar uma sacola transparente que
continha duas peças de roupa. Na verdade, ele disparou o pacote em sua direção
com violência e Hildegard então compreendeu que teria poucos segundos para se
trocar no banheiro minúsculo, localizado na saída da delegacia.
Ali sem dúvida era o lugar mais fedido de todos
naquela prisão, que conseguia emanar fortes odores, que variavam de acordo com
o ambiente, numa escala que ia do ruim ao extremamente desagradável. Assim que
fechou a porta às suas costas, notou que havia urina no chão e nas paredes,
além de escorrer um líquido catinguento em volta da privada, entupido com papel
e bosta. Até as pichações pareciam sujas, independentemente do teor que
continham, apenas pelo fato de estarem escritas naquelas paredes encardidas.
Sem ter onde se escorar, Hildegard conseguiu se
trocar segurando a sacola entre as pernas enquanto se despia do uniforme áspero
da prisão. Quando considerou a possibilidade de tentar se esgueirar pela
estreita janela basculante, o policial bateu na porta, a assustando, e ela só
teve tempo de jogar a roupa que usava dentro do vaso sanitário, dando descarga
antes de sair. Tomou o cuidado de prender o dispositivo com a calcinha, que
tirou especialmente para este fim, e deixou a água acionada, encharcando a
calça e a camisa com o nome da prisão.
O pátio, ainda que fosse exclusivo e reservado para uso
da polícia, estava tomado de repórteres e câmeras de televisão, que buscaram
seu rosto tão logo Hildegard pisou lá fora, vestindo uma calça jeans azul larga
e uma camiseta branca que deixava demarcado o bico de seus seios. Sentiu a
cabeça ser brutalmente forçada para baixo, assim que algemaram suas mãos para
trás, segundos antes de ser empurrada para dentro de um veículo preto,
descaracterizado, dotado de uma sirene chata que começou a berrar no instante
em que a porta foi fechada com força, mas de um jeito meio teatral.
Aquele era com certeza o momento de fama dos
policiais que a escoltariam até onde quer que ela seria levada, provavelmente o
ponto máximo de suas vidas medíocres e isso ficou nítido quando os dois
começaram a posar do lado de fora, se exibindo para a imprensa que cercava o
automóvel, parecendo um bando de urubu.
A encenação patética só terminou quando a aglomeração
começou a ser dispersada, no instante em que o banheiro passou a cuspir para
fora da delegacia a água suja de dejetos, que escorria da latrina que Hildegard
conseguiu entupir ainda mais. Embora se mantivesse de cabeça baixa, com o rosto
meio de lado em direção ao próprio peito, tentando ao máximo preservar sua
identidade das lentes encostadas nos vidros das janelas, de dentro do carro
conseguiu ver o líquido escuro alcançar os sapatos elegantes dos jornalistas.
Ela riu quando as repórteres soltaram gritinhos histéricos, cheias de nojo, no
instante em que o esgoto mostrou seu potencial de fedor.
A cena só não foi mais cômica porque, ao embarcarem,
os policiais levaram impregnadas partes daquela sujeira nas solas de suas
botinas desgastadas, o que fez do trajeto um verdadeiro passeio pelo inferno,
ao som de uma sirene estridente que foi abrindo caminho enquanto avançavam pelo
trânsito congestionado. Era isso ou os ratos fardados que a conduziam no banco
da frente é que exalavam um cheiro desagradável, como se não fossem adeptos de
cuidados básicos de higiene como escovar os dentes e passar desodorante. Porque
banho nitidamente não parecia fazer parte da rotina desses dois, pois ambos tinham
os cabelos sebosos, que escorriam oleosos por debaixo do quepe suado que fazia
parte de seus uniformes.
Ninguém se deu ao trabalho de dizer para onde estavam
indo, ou se depois voltariam, nada. Parecia até que ela nem estava ali
embarcada, porque foi ignorada até chegarem ao Fórum da cidade, quando a sirene
finalmente cessou, provocando um eco em sua cabeça que durou alguns segundos.
Não foi o suficiente para desnorteá-la, mas ao ser retirada sem muito cuidado
de dentro do carro, Hildegard sentiu-se atordoada. E ainda estava meio zureta
quando os flashes dispararam em sua cara, vindos de câmeras e celulares que
brotaram de repente, antes que sequer subisse o primeiro degrau da entrada
daquele suntuoso local.
Para a sua sorte, a imprensa foi barrada de segui-la,
sendo obrigada a se manter amontoada na escadaria da entrada principal do Fórum
Municipal, assim que a porta se fechou, após Hildegard passar acompanhada pelos
guardas. Todos os jornalistas arrulhavam numa agitação barulhenta que emendava
perguntas esganiçadas com sons de câmeras fotográficas, incansáveis, que buscavam
por seu rosto, escondido pela gola da camiseta. Lá dentro, tudo o que se ouvia
era o eco das botinas sujas dos policiais contra o chão de madeira brilhante, enquanto
marchavam edifício adentro a escoltando de um jeito que, em alguns dos passos,
seus dois pés se desencostavam do chão completamente.
O silêncio na recepção foi bem recebido por sua mente,
a esta altura bastante aturdida com tanto alvoroço. Fazia dias que sua rotina
envolvia lidar com estresses de todos os tipos que sugavam cada gota de uma
energia que não vinha sendo reposta; ela não dormia e mal comia. Mas de todos
os locais em que poderia estar, aquele sem dúvida era o mais propício para conseguir
êxito e fugir, por isso, se esforçou para se manter o máximo atenta. Provavelmente
teria apenas uma chance para escapar, então precisava de todo foco e atenção que
conseguisse reunir.
Hildegard já havia estado ali inúmeras vezes e por
variados motivos, afinal seu pai era um juiz muito famoso, o único da comarca, todos
na cidade o conheciam ou o trabalho que ele realizava, daquele local. Então, sabia
que a parte da frente do imóvel, onde a mídia neste momento se reunia, especulando
e aguardando por sua saída, não era nem de longe a melhor rota para usar, ainda
que estivesse disposta a utilizá-la, se fosse preciso. Porém, tinha
conhecimento de que a parte de trás do Fórum, ao contrário, estaria vazia e ela
conhecia uma maneira de escapar por ali sem ter que destrancar o portão que a
separava da rua, erma, de pouca movimentação: bastava pular o muro, que não era
alto e nem possuía cerca elétrica.
Ela não era do tipo atlética, nem tinha experiência
em escaladas, mas trabalharia com o que tinha, que realmente não lhe parecia
nada mal. Ou seja, se conseguisse pelo menos chegar até os fundos, todo o resto
da fuga seria muito mais fácil de resolver. Isso a animou e por pouco não sorriu,
quase sentindo o cheiro de liberdade.
Enquanto era encaminhada à força para o andar em que
ocorriam as audiências, calculou que, primeiramente, a dificuldade maior seria soltar
as mãos, ainda algemadas para trás. Depois, teria que arranjar um meio para distrair
os guardas e, por fim, precisaria correr bem rápido os três lances de escada
por onde agora subia, de volta ao térreo. Tudo isso disfarçadamente, num lugar
cheio de câmeras e de seguranças.
Enquanto escaneava o ambiente de modo analítico, do
jeito que conseguia, traçando mentalmente rotas de fugas possíveis e imaginárias,
Hildegard galgou 32 degraus sendo praticamente carregada pelos policiais, que
engancharam os antebraços peludos em suas axilas e praticamente a suspenderam
escada acima, como se ela não pesasse absolutamente nenhum quilo. Um deles
manteve sua cabeça apontada para baixo, espalmando a mãozona em sua nuca, e ainda
que se sentisse incomodada com a restrição de movimentos, não proferiu nem um
único “ai” porque sabia que nenhuma interjeição ou palavra seria ouvida. E
ainda que fosse, tinha plena consciência de que nada do que dissesse seria
levado em consideração – ao menos não por aqueles dois brutamontes.
Antes de ser forçada a se sentar em uma das cadeiras
duras de madeira, diante da porta fechada da sala de espera do terceiro andar, Hildegard
considerou que talvez até conseguisse render um dos guardas, que tinham caras
de bobos. Ponderou, na sequência, que poderia usar a arma deles na fuga, mas logo
refletiu que se por acaso fosse capturada isso certamente seria um agravante em
sua ficha criminal.
Embora torcesse com todas as forças que ainda lhe restavam
pelo pleno sucesso e total triunfo de seus planos, era uma mulher bastante consciente
de sua realidade e de tudo o que ocorria à sua volta. Já estava enrascada o
suficiente até o momento, de modo que tinha que arranjar um meio de fugir sem
se complicar ainda mais, caso algo desse errado e ela fosse recolhida novamente.
Mesmo sem querer, se viu pensando em como seria
passar o resto da vida atrás das grades, privada de liberdade e cercada de
perigos e pessoas perigosas, e ainda tendo que cumprir uma pena adicional de
alguns anos só por ter desarmado dois polícias tontos. Quer dizer, isso
considerando que ela apenas pegasse os revólveres sem disparar nenhum tiro, que
seria um agravante ainda maior e pior – principalmente se por acaso acertasse em
alguém, ainda que por acidente ou em legítima defesa, caso fosse proposital.
Mas aí não pensou em mais nada a respeito porque tão
logo os três pararam diante da sala de audiências, um dos guardas, o mais alto,
de bigode, puxou uma chave pequena de dentro do bolso da calça surrada que um
dia foi azul e deliberadamente soltou seus pulsos. Ou melhor, abriu o par de
algemas, seguindo o protocolo do terceiro andar (“É proibido permanecer com pessoas
algemadas”).
E foi então que Hildegard agiu. Não teve nem tempo de
refletir que a surpresa é o melhor elemento em uma situação deste tipo porque
ela própria foi surpreendida. Ao se ver livre dos grilhões que deixaram seus
ombros doloridos e seus pulsos marcados pelo metal duro, a mulher se botou em
disparada, escada abaixo, deixando os agentes atônitos atrás dela,
completamente sem reação durante quatro ou cinco valiosos segundos. E aí os
corrimões viraram meros enfeites ao alcance de suas mãos livres enquanto os
degraus passaram rasgando debaixo da sola fina de seus calçados, que nessa hora
se assemelharam a um verdadeiro tênis de corrida com placa de carbono. Se
sentiu projetada escada abaixo, se sentiu como um foguete!
De tudo o que havia pensado nas últimas horas, de
todos os planos, sair correndo na primeira oportunidade jamais foi considerado
e ainda não estava claro o porquê disso. Afinal, era um método super eficiente,
não dependia de nada além dela mesma e a oportunidade ideal para empreender a
escapada perfeita. Que, ok, podia não ser linda e maravilhosa, digna de cena de
cinema, mas tinha seu grau de incontestável eficiência. Tanto que ela estava conseguindo
fugir!
Ao revoar o primeiro lance de 12 degraus, rumo ao
andar de baixo, Hildegard ouviu o coração num batecumbum acelerado,
berrando em seus ouvidos que nem a sirene da polícia alguns minutos mais cedo. Ao
mesmo tempo, escutava comandos e palavras de ordem vindos lá de cima, lá de
trás, lá de onde havia deixado os dois agentes públicos comendo poeira. O
vozerio servia de guia, lhe mostrando a que distância se encontrava – dos
palermas e dos demais, que pipocavam, acionados pelo rádio, que também produzia
estardalhaço com os pedidos de reforços feitos pelos dois.
No andar de baixo, outros guardas entoavam instruções
– entre eles, para ela e para os funcionários do Fórum, que não sabiam reagir
diante de tudo o que estava acontecendo e, aparentemente, atrapalhavam a
ofensiva policial, que chegava aos montes em carros com giroflex girando colericamente
sob um céu cinzento e chuvoso.
Os gritos obviamente chamaram a atenção de todos que
estavam no Fórum, e também fora, aí a imprensa furou a barreira de contenção e
entrou no prédio num verdadeiro frisson atrás do furo, deixando a cena ainda
mais estonteada. Os jornalistas esgoelavam-se e acotovelavam-se numa corrida
sem regras, com os mais ligeiros alcançando primeiro os degraus da recepção. Aqueles
que carregavam as câmeras, equilibradas em cima dos ombros, algumas
transmitindo ao vivo o que estava ocorrendo, eram os mais lentos e ainda que
não estivessem municiados com microfones, esbravejavam raivosos conforme
ganhavam espaço no salão com o próprio corpo.
No segundo andar, ao invés de descer mais um lance, Hildegard
correu para o outro lado e pegou uma jaqueta preta que encontrou esticada no
encosto de uma cadeira alta. A peça seria mais útil para ela do que para a
secretária esquecida que vacilou, confiando demais no fato de que não seria
furtada num lugar como aquele. Ao diminuir a velocidade enquanto se vestia,
torceu o nariz ao sentir o perfume adocicado empapado na roupa, e decidiu em
cima da hora traçar uma nova rota para a fuga: desviou completamente a direção
e caminhou de cabeça baixa, o mais disfarçadamente que pôde, num passo
apressado, mas sem correr, e entrou no banheiro no final do corredor. Considerou
que era uma boa uma tentativa de despistar, mas também de se esconder.
Fechou a tranca da primeira cabine sentindo o suor já
brotando acima do lábio, formando um bigode invisível, molhado pelo mais puro
suco do desespero. Secou com as costas da mão esquerda e instintivamente pisou
com os dois pés em cima da privada, para o caso de olharem por debaixo da porta,
só que aí se sentiu boba, como se aquilo fosse um tipo de jogo, uma espécie de brincadeira
de esconde-esconde. Sua vida literalmente dependia que ela agisse, não se
acuasse que nem uma menina cheia de medo do bicho-papão!
Voltou a ficar em pé porque, além de tudo, não seria
pega desse jeito, caso fosse recapturada (pela polícia, que ainda gritava lá
fora, e também pelos repórteres, que representavam grau de perigo semelhante ou
até pior). Não, não. Teriam que correr bastante antes, ela não daria de bandeja
uma cena dessas para exibirem nos jornais na hora do jantar, saciando
expectadores com fome de sensacionalismo.
Sentia-se fraca, mas estranhamente com forças para
escapar dali; suas pernas pareciam dispostas a correr para qualquer direção
necessária, como se Hildegard dotasse de uma energia extra para qualquer tipo
de atividade física (era perfeitamente capaz de correr, pular, escalar...). O
instinto de sobrevivência opera milagres!
Ficou em relativo silêncio por quase dez segundos,
ofegante, buscando oxigenar melhor os pensamentos, num esforço para tentar clarear
suas ideias. Era fato que em pouco tempo a polícia entraria ali, com certeza já
havia um batalhão de detetives vasculhando o imóvel e mais um inteiro a caminho
do Fórum... Aquele seria um momento de fama especial para quem conseguisse a
façanha de capturá-la, a mídia toda estava convenientemente no local e a cidade
em peso se mantinha de olho no desenrolar de seu caso, com farto interesse e abundante
curiosidade. Então não podia de jeito nenhum dar mole, precisava sair do
banheiro, tinha que deixar o prédio, se evadir da cidade, ir embora para outro
estado, se mudar de país!
Destravou a cabine ainda sem saber o que faria porque
sabia que permanecer ali não a salvaria e também porque tudo dependeria do que ela
encontraria lá fora. Poderia, por exemplo, ser rendida assim que voltasse a
pisar no corredor ou não – e eram essas variáveis, esses elementos surpresas,
que definiriam de verdade o que Hildegard teria que fazer ao deixar aquele
banheiro. Para a sua sorte, sabia para onde correr, qualquer que fosse a
emboscada, e tinha a certeza de que correria até o fim.
Antes de sair, se olhou muito brevemente no espelho,
que era grande, bem iluminado e mostrou em detalhes suas olheiras e cada
expressão de cansaço que marcava seu rosto abatido. Se prometeu uma tarde
inteira num SPA, quando tudo chegasse ao fim e, ao puxar a maçaneta, sentiu
regozijo ao se imaginar numa banheira de ofurô.
Para a sua surpresa, o que encontrou ao sair foi uma
calmaria inesperada e oportuna, uma vez que todos pareciam convencidos de que
ela já estava lá fora. De alguma maneira estúpida, os policiais calcularam que Hildegard
conseguiu ser rápida o suficiente para escapar pelo estacionamento dos fundos –
numa velocidade ilógica, quase da luz, que no raciocínio deles a fez até passar
despercebida da vigília de todos que se encontravam ali.
A sandice foi a brecha perfeita para que ela caminhasse
sem problemas até metade do corredor, num passo firme que foi afofando seus pés
no tapete macio que combinava com a mobília e a decoração do local. Graças à
burrice alheia, Hildegard escapou pela janela da frente, se aproveitando do
fato de que a entrada do Fórum estava completamente vazia, sem ninguém, numa
clara demonstração de que a tática de busca adotada pelos guardas também não
era das mais inteligentes.
Enquanto escapulia, passando primeiro as pernas para
fora, se equilibrando no peitoril, conseguia ouvir a agitação se espalhando
pelo quarteirão, numa metástase disfarçada de busca que lembrava um pouco um
tipo de “caça ao tesouro” em que sua cabeça valia peso de ouro. Não se demorou
pensando muito a respeito, mas teve tempo de vislumbrar um cartaz de
“procura-se”, com uma foto sua envelhecida no meio e um valor qualquer de
recompensa, que nem dos desenhos.
Para descer pela janela, virou-se de costas e
atirou-se para baixo, devagar, se esforçando para não fazer nenhum barulho,
embora tenha soltado alguns gemidos ao se atirar numa tirolesa que não existia.
Encostou a barriga no muro gelado do Fórum enquanto esticava os braços, se
pendurando. Precisou se prender, no final com a pontinha dos dedos, para diminuir
ao máximo a distância que se encontrava do chão, um andar abaixo. E teve que
pular rápido porque a qualquer momento alguém poderia aparecer e flagrá-la que
nem uma lagartixa na parede, e denunciá-la, que era infinitamente pior do que
só vê-la fazendo o Homem Aranha.
O impacto no chão, ao pular pouco mais de cinco
metros e aterrissar de um jeito seco, feriu seus pés imediatamente, danificando
mais o esquerdo, que não voltou a pisar direito. Isso impossibilitaria gravemente
qualquer rota de fuga que incluísse corridas ou até caminhadas, o que a fez se
arrastar até a primeira viatura encostada lá fora para realmente poder fugir.
Não era pilota de fuga, mas se sentiu praticamente uma,
no instante em que girou a chave na ignição. E mais ainda depois que ligou a
sirene e saiu gritando que nem louca dentro da viatura, arrancando no berro os
motoristas que ousavam trafegar à sua frente, acionando o alerta sonoro que fez
até outros policiais saírem do caminho enquanto ela avançava sentido centro,
fingindo ser alguém da corporação. Em alta velocidade, buzinou para
motoqueiros, acelerou para caminhoneiros, disputou racha com um motorista de
ônibus e avançou em sequência três sinais vermelhos, quase provocando um
acidente.
Com o veículo ainda em movimento, puxou do
porta-luvas um óculos escuros tipo aviador e conferiu no espelho retrovisor que
o acessório era muito útil para disfarçá-la – até mais que o insulfilm dos
vidros, que também a camuflavam do mundo externo. Sua intenção era percorrer o
máximo possível de vias, se possível, viajaria até o limite da cidade, mas alguns
poucos metros depois ouviu pelo rádio quando foi descoberta. Não só isso, mas
descobriu também que a viatura contava com um potente sistema de GPS, que
mostrava em tempo real cada movimentação que fazia. Por sorte, teve tempo e
raciocínio rápido para largar o carro num beco qualquer, o mais perto que
conseguiu chegar da rodoviária.
Ainda que totalmente na base do improviso, considerou
que tudo estava acontecendo dentro dos conformes, segundo um plano que nem foi
elaborado, exatamente. Até a torção no tornozelo acabou por ser propícia para Hildegard
conseguir chegar ao guichê, ainda que se arrastando após abandonar o carro
oficial, toda xoxa, capenga, manca, anêmica, frágil e inconsistente. Nem viu
qual era a empresa, não se preocupou com nenhum destino; só queria sair da
cidade o mais rápido possível, também porque isso significava se sentar por
algumas horas, o que era benéfico para seu pé, a esta altura já bastante inchado,
com a dor aumentando conforme a adrenalina subia.
Mas ela não teve tempo de perguntar nada, nem de
falar algo. Assim que a viu, a atendente do guichê da rodoviária, que usava gel
no cabelo e vestia um uniforme passado, bem engomado, não quis saber o destino
escolhido, o horário desejado da viagem ou se Hildegard tinha preferência por
assentos na janela ou no corredor. Não. Ela simplesmente falou seu nome e
sobrenome completo assim que a viu. A funcionária segurava um telefone preso entre
a orelha e o ombro, e sem cerimônia nenhuma perguntou (porque sua fala foi em
tom de pergunta): “Hildegard? Hildegard von Bigen?”, ela repetiu duas vezes,
meio que para se certificar, piscando algumas vezes, bem devagar. Pareceu, de
relance, que a atendente estava mais nervosa do que ela, que empreendia fuga há
vários minutos.
Hildegard quis dizer que sim. Sua boca abriu para
responder, a língua coçou para replicar, mas antes que fizesse isso, que dissesse algo, sua mente a alertou, assim
que seus olhos captaram seu rosto lá atrás, estampado no aparelho de televisão ligado
perto da mulher. Ainda não tinha girado sobre os calcanhares machucados quando
a funcionária horrorosa da Viaje Seguro Viação Ltda. confirmou ao interlocutor
na ligação que Hildegard era Hildegard.
Sem ter para onde fugir, sem rotas para poder
escapar, com o cerco fechando cada vez mais, Hildegard se arrastou mancando até
a rua e se enfiou no primeiro ônibus de linha que passou. Ao embarcar, tomou o
cuidado de cobrir o rosto com a jaqueta fedorenta para não ser reconhecida por
ninguém – especialmente pelo motorista e pelo cobrador, que ficou esperando que
ela pagasse pela passagem, mas desistiu ao vê-la sentar com a cara colada na
janela. De cabeça baixa, chacoalhando involuntariamente de acordo com o sacode
do coletivo, que percorria ruas esburacadas, Hildegard se viu num jornal
dobrado, apoiado no banco ao lado. A reportagem não foi lida em protesto,
depois que ela se distraiu, pensando se a escolha da imagem teria sido
proposital. Na foto, seus olhos saltados a deixavam com ar de maluca.
Sem saber para onde ia, torceu para que a condução
fizesse um trajeto que a beneficiasse de algum jeito, pedido que pareceu ser
prontamente atendido, no momento em que Hildegard percebeu estar magicamente nos
arredores do bairro em que morava. E ela desceu no ponto da esquina de seu
prédio junto com outro passageiro, aproveitando-se da oportunidade, de um jeito
tão conveniente que, se tivesse querido algo tão perfeito assim, não teria
conseguido.
Claro que teria corrido até o apartamento se pudesse,
mas seu pé mal aguentava sustentar o peso de seu corpo enquanto estava parada, que
dirá correndo. Então se contentou em caminhar como se fosse uma senhora idosa,
mantendo o casaco em cima da cabeça, como uma burca. Ali era onde estava mais
exposta e passível de ser reconhecida e denunciada. Seus vizinhos pareciam estar
pessoalmente bastante ofendidos com ela, e com seus atos recentes, e se
valeriam de qualquer oportunidade para fazer absolutamente tudo contra a sua
honra.
Ela entrou pela porta de vidro após cruzar a calçada
sem encontrar com ninguém, destravando-a através de reconhecimento facial. O
som da trava se abrindo foi música para seus ouvidos, equivaleu a um tipo de
hino, uma ode à liberdade de estar em casa. É incrível como o dia a dia abafa
os detalhes que, no fundo, são tão especiais! Por exemplo, os sons que cercam
seu lar.
Abrir a porta do prédio equivaleu a abrir as portas
dos céus, depois de dias e noites tão tensos e intensos. Hildegard considerava
que merecia um bom banho depois de comer alguma coisa. Mas não qualquer coisa.
Tinha que se alimentar com algo especial, para comemorar o êxito de poder retornar
para casa.
Depois de dias lutando para se manter viva, ilesa, sã
e a salvo, estar de volta ao seu endereço era um sinal de sua vitória. Era um claríssimo
indício de sua esperteza, a evidência de que era capaz de dar balão em todo
mundo, até no sistema.
Saiu do elevador distraída, como se aquele fosse só
mais um dia comum, apenas um dia qualquer, e nem perdeu tempo com saudosismos, observando
o corredor familiar ou a porta de seu apartamento, perto da escada de
emergência, ainda lacrada com a fita amarela da polícia. Diziam haver um crime,
por isso o isolamento, mas não havia prova de nada, apenas convicção. Provavelmente
manteriam o corredor com aquela parafernalha policial só para manter o ibope da
mídia e da população, que se interessava por Hildegard somente até que outro
evento passasse a despertar mais atenção. Certamente em questão de uma semana
já a teriam até esquecido.
Caminhando extremamente devagar, com os movimentos
restritos e com cada gesto minimamente calculado por causa da dor intensa no
pé, que talvez tivesse quebrado em alguma parte depois que ela pulou do Fórum, Hildegard
não entrou em sua casa. Em vez disso, deliberadamente avançou mais alguns
passos pelo corredor, deixando sua porta interditada para trás, sem pestanejar.
Foi decidida até o apartamento vizinho, onde morava um casal recém-casado, pais
de primeira viagem de um bebê barulhento que chorava desde o dia em que tinha
nascido, para o azar de Hildegard. Ou azar dele próprio, isso ainda não estava
muito claro até o momento.
Ao girar a maçaneta, não pareceu nem um pouco
preocupada com a possibilidade de encontrar alguém lá dentro e já no primeiro
segundo viu que a porta estava, como sempre, destrancada. Tem gente que realmente
não consegue aprender nada, mesmo depois de uma lição muito dura! E ainda que
estivesse com uma dor alucinante, nos pés, nas pernas e na cabeça, Hildegard não
fez nenhum ruído ao caminhar até a cozinha do vizinho e abrir uma geladeira que
não era sua, sem cerimônia nenhuma. Na movimentação, nem gemeu, só de
satisfação.
Como imaginado e previsto, os dois potes de tampa
laranja ainda estavam lá, do jeitinho que ela tinha deixado, dias atrás.
Saiu do apartamento vizinho pouquíssimos segundos
depois, e da mesma forma como entrou: mostrando-se integralmente familiarizada
com aquele ambiente, sentindo-se à vontade num espaço que definitivamente não
era seu. E saiu de lá carregando os dois potes que tirou do congelador, que
julgava serem seus. Decidiu que seria seu jantar daquela noite mais do que
especial, talvez até comesse à luz de velas, bem romântica.
Realmente, mesmo que tivesse planejado tintim por
tintim dez planos de fuga mais que perfeitos, nenhum jamais se assemelharia à
realidade que agora ela vivia. E pela primeira vez, em dias, Hildegard sorriu, mostrando
todos os dentes, ao entrar em casa e ser invadida por aquele cheiro tão
aconchegante e acolhedor de seu lar.
Sua memória olfativa imediatamente ativou lembranças
de um tempo que não envolvia dor no pé, escapadas por janelas de Fórum, prisão,
bebê chorando, carro de polícia, nada disso. Mas Hildegard não ficou pensando nessas
coisas porque, famintíssima que estava, depois de horas sem comer, dias, tudo o
que fez foi focar sua energia, a que ainda lhe restava, para se preparar uma
refeição decente.
Optou por fritar o congelado com um resto de cebola
que a perícia teve a dignidade de manter dentro da geladeira (todo o resto
havia desaparecido, até os iogurtes caros e os itens da despensa). Faria um arrozinho simples para acompanhar e só,
nem precisava de mais nada. Apenas isso já estava bom, muito bom, excelente, um
verdadeiro banquete!
Completamente distraída, de guarda baixa,
provavelmente por causa do sono e do acúmulo de cansaço, Hildegard abriu a
janela da sala para ventilar um pouco, depois que o acebolado levantou uma fumaça
com aroma de fome. Nem cogitou a possibilidade de algum vizinho sentir o cheiro
e estranhar, muito menos de ser denunciada por causa de um gesto tão bobo e
automático. E foi exatamente assim que Hildegard foi recapturada. Após uma
denúncia.
Junto com a viatura que a levou presa, um carro de reportagem
chegou a tempo de flagrar a recondução da detenta para dentro do camburão. A jornalista,
num penteado impecável, entrou ao vivo do jardim do prédio de Hildegard,
segurando o microfone com o emblema da emissora numa firmeza que combinava com
sua postura ereta. A tarja da notícia indicava, em letras garrafais: “FIM DA
LINHA”.
– Estamos aqui ao vivo em frente à casa onde morava Hildegard
von Bigen, uma mulher de 35 anos que ficou conhecida recentemente no país
inteiro após cometer um crime bárbaro que chocou seus vizinhos, e não apenas
estes, que a definem como uma boa pessoa, uma mulher pacata e de fácil trato.
Von Bigen era considerada foragida e estava sendo procurada pela polícia desde
a manhã de hoje, depois que fugiu do Fórum da cidade. A detenta escapou
correndo assim que teve as algemas retiradas pelo guarda que a conduzia para a
audiência que definiria o tempo de sua pena, roubando uma viatura na sequência,
para auxiliar na fuga. Lembrando que o julgamento de Hildegard terminou no
final da semana passada, com o júri sendo 100% favorável à sua condenação. Até agora
não há muitas informações sobre o que teria realmente motivado Hildegard von
Bigen a viver aquilo que está sendo chamado como um verdadeiro “dia de fúria”, principalmente
considerando o depoimento de pessoas próximas que a conhecem, incluindo sua
família e alguns amigos. Seu pai, por exemplo, o conhecido juiz de direito, doutor
Antony von Bigen, se disse surpreso, em entrevista exclusiva concedida à nossa
equipe, no jornal das dez (você pode assistir à repetição logo mais, na edição
da noite do nosso telejornal). Mas qualquer que tenha sido a motivação, o fato
é que Hildegard é acusada de matar o filho de seus vizinhos, ainda que o corpo
não tenha sido localizado até o momento. O delegado responsável pelo caso
informou que encaminhará a comida que Hildegard preparava no momento da prisão para
devida análise e exames de DNA. É com vocês, no estúdio.
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