Sobre viver

 

Na semana passada a Organização Mundial da Saúde decretou o fim da emergência de saúde global, provocada pela Covid-19. Não é o fim da pandemia, propriamente dita, mas o anúncio foi recebido com bastante alívio porque significa que há uma diminuição dos riscos à saúde, provocados pela doença. Para quem viveu tudo isso como nós, desde o começo dessa longa caminhada, cada passo conta – e muito!

Só não digo que vou parar, finalmente, de usar máscara, porque sinceramente ainda não me sinto segura para isso, já até me acostumei a ser a única usando máscara nos lugares fechados onde vou (tipo mercado, farmácia, quitanda e tal. Tenho uma amiga que fala que meus rolês são de tiazinha, e são mesmo!). Para a minha sorte, já faz uns dois meses que aboli o elevador, agora subo e desço de escada, e no meio dos 82 degraus que me separam do chão eu não preciso de máscara porque se tem um lugar pouco habitado no prédio onde moro é nessa escadaria. Galera se soca tudo junto na cabine e fica lá tudo espremida, mas não usa a escada. Para muitas coisas, incluindo essas, eu adoro ser a diferentona!

Lembro que quando tudo isso começou, naquela época em que “quarentena” significava “40 dias” e “isolamento social” era só um conceito distante e abstrato, minha maior angústia era justamente não saber quando tudo terminaria, nem de que forma seria esse desfecho. Era uma agonia que, até hoje, quando vejo fotos, ou escuto determinadas músicas, o gatilho me leva de volta para o lodo da lama onde nadei por meses. Por anos! Foram mais de três até aqui.

Nesse período sombrio era um tal de “vida que segue” que não seguia, porque muita gente morria – muitos do nosso convívio, da nossa família, do nosso círculo de amigos, numa loteria sinistra e macabra que sorteou de gente nova até os mais velhos. Os dias eram todos iguais às noites, inclusive no quesito temor. O puro suco do desespero e ranger de dentes, que era adoçado com a perversidade do então presidente que ainda hoje me recuso a chamá-lo pelo nome. Juro para você que se esse cara for preso por causa de falsificação de carteirinha de vacinação eu tatuo o Zé Gotinha em mim! Grande e estimado José Gota!

Viver a História é curioso por causa disso: enquanto a gente vive, sem saber do amanhã, das voltas que a Terra dá e que trazem de volta as consequências de cada ato, de cada fala e de cada abuso, a gente sofre e reclama, mas depois é tão satisfatório ver o tal do “dia após o outro”! Ainda que demore três anos para acabar, e de forma parcial, é gostoso demais! Faz bem valer aquele ditado do “o que não te mata, fortalece”.

Longe de querer romancear tudo isso, quem me conhece sabe que esse é o meu maior receio desde o início, mas vale registrar que a mulher que hoje escreve essas palavras não é a mesma de quando esse pseudônimo foi criado, lá no começo de 2020. Evoluí nas histórias e nos livros, mas especialmente subi, galguei e desbravei íngremes e irremovíveis montanhas dentro de mim, que como bestas feras tentaram me derrubar de diferentes formas, incansavelmente, praticamente todos os dias ao longo desses três anos. Não fui poupada de nenhum confronto e em dado momento pareceu até que todos os meus traumas resolveram se agrupar como um batalhão disposto a me dominar. Foram muitas lutas internas e batalhas dificílimas que só eu presenciei. E venci! Estou aqui, né?

Sinceramente não sei quais são as outras surpresas que a nossa era nos reserva, e nem sei se espero que sejam mais amenas ou mais calmas, porque acredito que, no fim das contas, a tempestade é realmente o que faz uma boa marinheira – ainda que estejamos em terra firme, quase todas com os pés no chão. Então, desejo apenas tempo para que a gente se recupere desse trauma sem precedentes da história dessas nossas vidas, e que a gente saiba aproveitar cada oportunidade para aprender, evoluir e não surtar. Tudo fica bem quando acaba, e se não fica é porque ainda não acabou.

Fico muito feliz por termos sobrevivido, por estarmos aqui e principalmente fico contente por sabermos reconhecer o quão difícil foi enfrentar tudo isso, e o quanto estamos mais fortes agora! 

No fim, é tudo sobre viver.

 

Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.


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