Você é o que você come

 

Lembro quase perfeitamente do dia em que ouvi pela primeira vez a frase (que beira um conceito profundo) que diz: “você é o que você come”. Na época, fiquei muito preocupada porque eu me resumia basicamente a pizza e refrigerante, docinho de larica e bisnaguinha de janta. Minhas compras do mês, para você ter uma ideia, eram feitas em bomboniere e os entregadores do Ifood viviam no meu endereço. Eu ficava satisfeita por pedir yakissoba em pleno dia 25 de dezembro, por exemplo.

Porém, embora tenha me preocupado (um pouco), não foi o suficiente para me fazer mudar de hábitos, ou de rotina. Não porque eu fosse enjoada para comer, longe disso, sempre fui uma draga. Mas eu me acostumei com aquilo, com a rotina de almoçar fora todos os dias, ou pedir comida de fora, diariamente. Era prático, não afetava minhas finanças e gerava uma quantidade irrisória de louça suja para lavar depois.

Só que aquilo ficou na minha mente. Por anos, é verdade, mas ficou. Eu não queria ser pizza. Nem queria que durasse para sempre a minha “fama” na pizzaria da esquina, cuja atendente falava comigo numa periodicidade maior que as conversas que eu mantinha com a minha família naquela época. Mas eu tampouco sabia quem eu gostaria de ser, nutricionalmente falando. Nesse período, que abrangia praticamente minha vida inteira, vale dizer, assuntos como vegetarianismo ou veganismo não passavam nem perto do meu radar. Acostumada desde sempre a comer errado, não havia no meu horizonte nem a mais remota possibilidade de fazer uma revolução alimentar, eliminando o que me fazia mal (que ia além das carnes, simplesmente, porque sempre tive várias intolerâncias que embora acabassem comigo, não me impediam de comer o que eu comia. Mesmo passando muito mal depois).

Meus dias sempre começavam com uma caneca cheia de café até a borda e um cigarro. Dois, se havia tempo para fumar mais um, enquanto me arrumava para o trabalho. Era um maço por dia, um maço e meio, a depender da semana; chegava a dois, aos fins de semana. Eu fumava bem, achava até que aquele vício fazia parte de mim, da minha personalidade, de quem eu era. E fazia, se considerarmos que por onde eu passava, deixava um rastro, um odor forte de nicotina e fumaça. Que eu mesma não sentia, já que meu olfato também foi prejudicado pelo cigarro, que foi um parceiro que tragou vários anos da minha vida (quase duas décadas).

Ou seja, eu era uma pizza nicotinada. Servida ao molho daquilo que me fazia mais mal, como álcool, refrigerante e tudo de mais duvidoso que eu fosse capaz de enfiar na minha geladeira. E eu era tão boba que achava que ir tantas vezes ao banheiro, com mal-estar, era só mais um traço de quem eu era. Já falei isso outras vezes e repito: a gente se acostuma com muita coisa na vida, até com o que é ruim e que nos faz mal. Eu sou a prova disso!

Largar o cigarro foi o primeiro passo da minha longa caminhada chamada reeducação alimentar. E eu nem sabia o quanto isso estava interligado com a transformação que veio logo na sequência e que mudou definitivamente os meus dias. Pouco tempo após meu aniversário em 2016, parei de fumar e de comer carne, e a decisão respingou nas pizzas e nos refrigerantes que eu tanto gostava, e consequentemente, por causa disso, comecei a passar um pouquinho menos mal, no meu dia a dia.

Falando assim, parece que foi muito fácil, mas não foi. Ainda hoje, tanto tempo depois, quando vejo pessoas fumando na rua ainda me dá uma vontadezinha. Neste sentido, vale dizer que resistir à tentação foi muito mais difícil do que decidir parar, propriamente. Tive vários sonhos onde me via fumando e aí depois acordava super chateada, até me dar conta de que não tinha sido real. Lutar contra a gente mesma representa a mais difícil de todas as batalhas e guerras que eventualmente são travadas enquanto cá estamos, sendo quem somos.

De todas as pessoas do mundo, acho que quem mais se chocou com a minha decisão de ficar vegetariana foi a minha avozinha querida. No fim da vida, quando a cabeça dela já começava a dar um certo apagão (minha avó sempre teve uma excelente memória), ela insistia me perguntando, várias vezes, sempre que me via: “mas você não come mais nem peixe, minha filha?”. “Nem peixe, vozinha”, eu respondia, com uma paciência exclusiva para ela, que só não se ofendia mais com isso porque nos nossos encontros o horror da minha avó era ver que eu estava com alguma tatuagem nova (dona Helena não gostava nem das antigas, que ela jurava serem recentes). Nossos minutos de convívio entremeavam conversas sobre peixe (que eu realmente não comia mais) e meu bom gosto para desenhos eternizados, riscados na minha pele com agulhas. Saudade disso!

Hoje, o que percebo é que gente que eu mal conheço parece se incomodar com as minhas decisões em torno do meu prato de comida. Tem gente que é sem noção, eu sei, que nem quer saber quais são os alimentos que fermentam ou não (uma preocupação constante na minha rotina alimentar), e aí por causa disso levanta bandeira que eu nem pedi para ver. Faz questão de me dizer o que come e o que não come, como se houvesse algum interesse da minha parte em saber. Quer comer nuggets feito de pintinhos, gordura de vaca e colocar no seu prato tripa de porco, o problema é seu! Você é responsável pelo que come, e fim de papo. Quer se encher de bicho morto impregnado de sofrimento, de novo: o problema é todo seu!, tenho nada com isso, não. E ouvir sobre isso não me ofende, só me aborrece (mas tem muita coisa que me aborrece nessa vida, então isso nem é uma exclusividade de quem é chato).

O ponto é que uma série de decisões, conscientes, transformou a minha relação com a comida. Outras, por imposição (tenho uma questão de saúde relacionada diretamente ao assunto), arremataram, rechearam e embrulharam esse novo estilo de vida (porque descobri que comer bem envolve uma série de fatores que vão muito além de se mastigar várias vezes e se manter hidratada). E no decorrer desse tempo, já são vários anos, acompanhei a revolução silenciosa, porém veloz, da tecnologia, que nos propicia ferramentas maravilhosas como o aplicativo Desrotulando, por exemplo, que apresenta uma pontuação para os alimentos industrializados, depois de escanear o código de barras das embalagens (é maravilhoso, eu não tinha noção da quantidade absurda de conservantes inseridos naquelas besteirinhas “boas” de se beliscar).

Esse fim de semana, para você ter uma noção, descobri que um inocente M&M’s consegue ser mais podre do que todos os produtos que já escaneei, a título de curiosidade, na prateleira do supermercado. O choque me fez ver o quanto ainda me falta avançar nessa longa jornada intitulada “comer bem”. Estou até agora passando meio mal, provavelmente porque sou muito impressionável, o efeito placebo bate forte por aqui... mas não causa nenhuma surpresa ou espanto, agora que sei o quanto de gordura saturada eu ingeri ao comer meia dúzia de confeitos de chocolate coloridos (inclusive os corantes artificiais são puro veneno!).

Ainda assim, reconheço meu progresso – e preciso fazer isso, até como forma de me parabenizar por resistir tanto, todos os dias, ou sempre que faço compras (agora no mercado, porque na cidade onde moro atualmente não tem bomboniere, e porque eu larguei mesmo essa vida de comer lixo). Em meio a um inédito tratamento do meu intestino, que envolve tomar vários remédios por dia, paralelamente eu tenho mantido uma consciência maior sobre cada migalha ingerida. A comida, assim como os pensamentos, tem que ter uma preocupação da nossa parte. Hoje sei disso porque se tem uma coisa que faço bem é aprender com os meus próprios erros.

Eu sou o que como. E você?

  

Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.


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