Aquela tal de vida adulta

 

A vida adulta é recheada de emoções e questões que sinceramente às vezes tenho vontade de correr para debaixo da cama e me esconder (como se fosse possível fugir de certas coisas!). Claro, não me refiro aqui às obrigações de gente grande, por exemplo, ter que ir trabalhar contra a vontade, ainda que isso seja um saco – tem dias que tudo o que se quer é ficar na horizontal, a depender da época, até em posição fetal... Mas para esses assuntos trabalhistas e empregatícios sempre dá para dar um jeitinho: perde-se a hora, inventa-se uma cólica, finge-se um mal-estar qualquer, uma diarreia, um enjoo, enfim... Vai da criatividade de cada pessoa. Eu mesma já enfiei até sabão no olho, só para conseguir uns diazinhos afastada da labuta, que consome nossas preciosas horas de lazer.

O problema é que há mais coisa. A vida não se resume a pagar boleto e bater cartão, para a nossa alegria e sorte! Mas é justamente esse “além” que nos fode. Tem coisas que a vida coloca bem na nossa fuça que não se tem para onde correr, é impossível fugir. Por exemplo, fazer um exame chato e desagradável como uma colonoscopia, ou uma endoscopia, ou ambos, num mesmo dia. Aconteceu comigo e trago aqui o meu relato a respeito.

Tudo começou quando passei a acreditar que fui mal feita, porque só mesmo tendo sido “feita nas coxas” para nascer tão cagada! Existem situações piores? Existem, claro que existem. Mas ter síndrome do intestino irritável, que traz a tiracolo uma série de restrições alimentares, sem falar na ansiedade, também é uma bosta.

É válido dizer que na infância o fantasma que mais me assombrava era o da diabetes. Morria de medo de um dia não poder comer o que gosto. Receio ou premonição? Não sei, fica aí o questionamento.

Eu fui uma criança do tipo “Danoninho com pera”. Menina bem criada, numa família relativamente estável, só depois de muitos anos fui ver na terapia o mal que o ambiente familiar me causou. Mas até isso acontecer, eu posso dizer que fui uma privilegiada. Nunca passei nenhuma necessidade, é o quero dizer, sempre tive casa e tal. E sempre fui fresca para comer. Salada, por exemplo, comecei a pôr no prato só nesse século, na época em que morei no Mato Grosso e tirava da horta o que ia consumir no almoço ou no jantar. E até uns dez, 11 anos de idade, praticamente tudo o que eu comia era arroz e feijão. E o feijão era peneirado porque eu era fresquinha e porque minha mãe me mimava (nesse sentido).

Depois que eu “cresci”, passei a contemplar de maneira forçada e a contragosto uma “ladeira de zica”, por onde rolei desembestada por anos e anos, até finalmente ter o diagnóstico que me serviu de legenda para eu poder me entender. Aquele papo de que a gente se adapta e se acostuma com tudo é uma verdade. Eu me acostumei a passar mal! Comer virou um sinônimo de passar mal.

Eu sabia que, por exemplo, cerveja acabava comigo, me fazendo sofrer em cólicas como uma rainha às avessas em tronos quaisquer, em qualquer lugar que fosse? Sabia! Já na primeira latinha a barriga inteira se contraía e doía, mas ainda assim eu bebia. Teve um tempo em que bebi todo dia, foi uma fase bem melancólica e alcóolica, passei horas dentro de banheiro. Mas ao mesmo tempo eu desconhecia até bem recentemente que brócolis também é um perigo para mim. E cebola. E maçã. E a minha vida inteira mudou quando eu tive acesso a uma lista de proibidões, aos quais confesso que recorro quando eventualmente ligo meu interruptor do “foda-se”. Como mesmo: me acabo nos pães, em sorvete, meto para dentro vários chocolates e me estrago por dias. A eu do futuro que sempre se vira.

E aí o que aconteceu foi que a eu do futuro tomou no cu quando o presente chegou, em forma de uma mensagem no WhatsApp com as instruções para fazer dois exames que eu aguardava há quase um ano (me impressiona o quanto o desmonte no SUS fodeu nosso Sistema, mas isso é papo para outra hora). A endoscopia e a colonoscopia, cujos pedidos de urgência foram feitos em março passado, foram marcadas para o dia 10. Ou seja, foram mais de duas semanas sofrendo por ter que fazê-los. A primeira ansiedade de 2023 foi por isso, acordei suando já na manhã do dia 02. Como diria minha irmã, para mim e minha amiga que sempre me acompanha nesse e em outros rolês, “vocês são muito desesperadas!”.

Eu sou mesmo, mas penso que, pelo menos, depois me sobra história para contar.

Não vou ser escatológica e falar dos dois laxantes diferentes que tive que fazer uso dois dias antes do exame, nem o quanto isso afetou meu sono na noite que antecedeu a consulta, me fazendo correr para o banheiro a cada meia hora, não tendo nem mesmo a companhia da Linguiça, que só levantou na primeira descarregada. Mas preciso dizer que a limpeza foi definitivamente completa: limpou meu intestino inteiro, limpou meu passado de erros, todos os meus pecados, limpou até meu nome no SPC, se duvidar. A um preço altíssimo (literalmente, considerando que tive que pagar pelos medicamentos todos – o SUS foi desmontado, gente! É sério).

Pedi para minha fiel amiga me acompanhar até o hospital, que além de tudo fica em outra cidade. Ela é que foi dirigindo e ainda me deu um baseado, para eu fumar no caminho! Uma querida, estou certa de que na volta agradeci mil vezes por isso tudo. Puta rolê chato, não é qualquer uma que topa ir, não! Mas ela foi, e ainda tendo que me aturar durante trajeto, listando todos os meus medos relacionados aos procedimentos: não ficar sedada o suficiente, cagar na maca, perfurarem meus órgãos, qualquer problema que pudesse me matar... entre outros.

Quando chegamos lá, a pobre foi obrigada a me ouvir reclamar da demora, reclamei que estava com dor de cabeça, que estava morrendo de fome, que queria ir ao banheiro. Reclamei que a sala de espera estava cheia, que tinha gente lá dentro tossindo e aí, por ficar no corredor, vi um tiozinho sair do exame vestindo aquela vergonhosa roupinha de hospital, deitado numa maca que ficou lá mesmo, no meio do corredor. Aí reclamei porque não queria ficar daquele jeito também, reclamei do risco de ficar com a minha bunda de fora, insisti e implorei para que ela não me deixasse muito tempo ali, para que me levasse embora depois arrastada, se fosse preciso, carregada no carrinho de lixo químico, foda-se, que desse um jeito.

Minha amiga no fim reclamou que eu destruí com o emocional dela, só porque precisei pedir para que ela cuidasse da minha cã se algo de ruim me acontecesse, para que desse um bom destino às minhas plantas, caso eu morresse... Olha... amizade é um tipo de amor muito valioso e extremamente especial, vou te contar...!

Na hora de finalmente fazer os exames, amarrei errado minha roupinha e fiquei com tanto medo de expor meu cu desnecessariamente que saí parcialmente sedada do exame segurando o tecido. Não tive o efeito que imaginei que teria, não falei bobagens, nem me senti agradavelmente drogada depois. Fiquei inconsciente por uns 20 minutos, enquanto sondas entravam em mim por cima e por baixo, e ao acordar já estava pronta para ir embora – bem pronta! Troquei de roupa toda trôpega, no banheirinho apertado, e saímos as duas quase correndo na chuva, em direção ao carro.

À noite, chegando em casa, fui ver como eram os aparelhos utilizados, qual aparência eles tinham. Parece que meus miúdo passaram a doer depois disso, o que prova o quanto eu sou impressionável. Os resultados só saem daqui 20 dias úteis, que é o prazo que eu tenho para trabalhar agora outro tipo de ansiedade.

Ontem tive um dia difícil, passei o dia resmungando um “não queria ser eu”, “não quero ser eu”, “queria ser outra pessoa”... mas agora até que fico satisfeita pelo meu feito, por toda a minha coragem num momento necessário. Me sinto até mais madura, um pouquinho, mais fortinha. Mas mesmo assim, sinto que agora vou viver na expectativa para que nunca mais precise passar por essa experiência, amém.


Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.


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