Um amor de natal

 

Este conto foi escrito para o Especial de Natal do Lettera, e gira em torno do universo do livro Amor incondicional.


O silêncio seria total, não fossem os habituais ruídos que diariamente preenchiam os cômodos do pequeno apartamento: o motor da geladeira na cozinha, o chuveiro pingando dentro do box, os sons de alguma reforma pela vizinhança, ora uma buzina, ora uma sirene, ora uma voz ou outra que subia até o quinto andar do antigo prédio localizado na movimentada região central de São Paulo. Mas o que realmente despertou Talita naquela manhã, minutos antes de o relógio apitar, foi a ansiedade para o seu primeiro dia de trabalho. Ao abrir os olhos ela estatelou o olhar no teto branco, forçando a mente a acordar através da vista, e mirou na claridade que a fresta da janela do quarto desenhava com a luz do sol, recém-nascido.

Estava animada, há tempos aguardava ansiosamente por esse momento. A espera envolveu um planejamento minucioso que a fez se mudar de casa e de endereço, depois de atravessar a ponte em cima do rio Paraíba do Sul dentro de um ônibus carregando duas malas, ao ir embora para outro estado. Saiu do conforto da casa dos pais no Rio de Janeiro para se aventurar morando sozinha, na cidade mais agitada e populosa do país. Além da família inteira, deixou para trás todas as suas referências (geográficas, temporais, de diversão etc.), seus amigos, as belas praias cariocas...  

Era um preço alto, mas sentia necessário se desprender assim, sair um pouco do comodismo e principalmente da sombra das irmãs mais velhas, tão perfeitas em tudo, sempre. Acreditava que só assim conseguiria o amadurecimento tão almejado; desde a juventude que seu sonho era ser adulta, afinal.

Mas claro que dona Nívea, sua preocupada e amada mãe, não concordava em nada com essa história toda de mudança. Dizia que era loucura, encarava sua decisão como um ato de pura rebeldia, torcia abertamente para que tudo desse errado e Talita voltasse logo para debaixo de sua asa, onde julgava ser o seu lugar. Por sorte Wagner, o pai, fazia o tipo mais conformado, não era dado a cobranças. Talvez porque soubesse que hora ou outra a filha ganharia o mundo, a bordo de suas asas. Ou da Viação Cometa, que foi o caso.

Naquela manhã, ao acordar, Talita enviou uma mensagem para a mãe antes mesmo de sair da cama. Não foi nada demais, digitou só um texto curto, suficiente para Nívea saber que sua indomável filha permanecia viva, tinha acordado, a amava e estava cheia de saudades. Eram praticamente as mesmas mensagens todas as manhãs e também à noite, antes de dormir. Ai dela se esquecesse!

Afastar-se de todo esse protecionismo materno certamente também seria benéfico para o seu amadurecimento e parecia que quanto mais longe Talita ficava, mais claro isso se tornava. Nívea não agia por maldade, ela sabia, mas isso não anulava o impacto que esse excesso de cuidado provocava em sua vida.

Ao se levantar, tomou dois cuidados: primeiro, pisou com o pé direito no chão, para dar sorte; depois, evitou o contato com o chão, propriamente dito. Sim, porque usar chinelo dentro de casa era um hábito paulistano adquirido com sucesso. No Rio andava descalça, nem se importava. Em São Paulo parecia que o piso vivia sujo, empoeirado, mesmo quando acabava de limpar. Não havia pano umedecido em desinfetante que vencesse a constante brisa de poluição, que invadia o espaço por frestas quase invisíveis, incomodando mais que maresia, ainda que não corroesse nada. Na briga para manter os pés limpos, lançou mão da arma mais eficiente e se calçou, já na primeira semana.

Um pensamento recorrente sempre vinha nessas horas, em direção ao subúrbio da capital fluminense: Talita ficava imaginando como seria para fazer os irmãos mais novos andarem pelo apartamento de chinelo, numa eventual visita da família. Cláudio e Marquinhos às vezes faziam um show para se calçar na hora de sair, que dirá estando em casa!

Lembranças assim, em especial aquelas que envolviam os meninos, eram uma tentação para não jogar tudo para o alto e voltar correndo para a barra da saia da mãe, para o seu lar de verdade. Porque embora se sentisse muitas vezes podada, estar em casa era seguro e confortável. Quentinho de um jeito que só o aconchego familiar consegue ser.

Para resistir à tentação, Talita se manteve determinada a pelo menos chegar ao dia em que finalmente começaria a trabalhar. Com certeza a saudade era inflamável desse jeito porque sua cabeça andava à toa, desocupada dentro de um imóvel vazio. Uns diazinhos no serviço novo bastariam para distraí-la.

Por isso amanheceu feliz, ainda que na noite anterior tenha ido dormir chorando, abraçando o travesseiro para tentar se consolar. Sentia-se desolada, com falta de sua cama, do quarto e até do barulho à noite de seu bairro, que era diferente. Aqui qualquer coisinha a assustava, os pesadelos sempre envolviam alguém escalando o prédio até a pequena varanda, a poucos metros de onde estava deitada. Aí dormia mal, acordava cansada... Tudo parecia motivo para ir embora. Vazar, como diziam na quebrada.

– Bom dia, meu amor. Estou ligando para te desejar boa sorte no seu trabalho novo – a voz da mãe soou melodiosa, do outro lado do celular – Mas já sabe, né?

– Bom dia, mãe. Sim, já sei. Se não der certo...

– ...volta para cá – elas falam juntas – É claro! Não tem cabimento você estar a tantos quilômetros longe de nós. Amor, qual é a distância, mesmo? – Nívea afasta a boca do telefone, o que faz sua voz diminuir o volume – A quilometragem, Wagner! Estou falando aqui com a Saman-, com a Talita.

– Bom dia, filhota! – o pai fala, sua voz grave surgindo na ligação de repente – Boa sorte no serviço novo, evita já chegar arranjando encrenca com as pessoas, Talita. Estuda o lugar, analisa o ambiente, vê bem quem é quem.

– Pai...

– Você sempre arranja problema nos lugares onde trabalha, garota! Sabemos como é o seu temperamento.

– Mas agora é diferente, pai! É o meu primeiro trabalho depois de me formar na faculdade.

– Certo. – Wagner pigarreia – Tá, vou passar para a sua mãe. Um beijo, se cuida, não anda em ruas perigosas, cuidado com assaltos.

– Me dá um crédito, pô, na moral... – Talita resmunga.

– Seu pai só se preocupa com você, meu amor – Nívea volta a falar, mas começa a responder um dos irmãos em vez de conversar.

– Tá, mãe, vou me vestir para trabalhar. Boa sorte para mim.

– Boa sorte, filha querida. Me manda mensagem quando chegar lá.

– Não, mãezinha, te mando mensagem à noite, quando voltar. Tá bom?, um beijo. Te amo. Manda um beijo para o papai. E um beijão para o Cláudio, para o Marcos e também para o Júnior. Diz para a Samanta que ainda estou esperando o envio da minha camiseta pelo Correio! Eu já mandei o endereço para ela, mãe! Mãe! – Talita chama mais alto, porque Nívea pareceu se distrair com alguma atividade paralela à ligação – E a Fernanda?

– Sua irmã está bem, me mandou mensagem ontem à noite, um pouco depois que falei com você. Ela está preocupada com o Natal.

– Natal? Mas hoje ainda é dia 13 de janeiro...

– É, mas você conhece a Nanda, Talita... Já procura ver certinho o esquema de folga no hospital, filha.

– Até parece que vou chegar no primeiro dia de trabalho já perguntando sobre folga, mãe. Do Natal, ainda por cima! Preciso antes passar pelo período de experiência, né, vamos com calma. São três meses, primeiro.

– Tá bom, meu amor. Mas não deixa para ver isso muito em cima da hora porque Natal é data concorrida, todo mundo quer ir para casa ficar com a família. Eu espero que você também queira, ou já não gosta mais de estar aqui com a gente?

– Ai, mãe... – Talita suspira. Muito cedo para uma chantagem emocional, dona Nívea, isso é golpe baixo – Te amo, tá? Um beijo, ótimo dia.

Talita desliga o celular e fica um tempo olhando para a tela, até apagar. Sua primeira missão, então, era resistir ao período de três meses, ser efetivada e depois se focar até o Natal. Se distraiu pensando em como seria bom voltar estável para casa no fim do ano. Madura!

Mas para isso ser passível de acontecer, antes era preciso começar todo o processo, que realmente estava só no início. Então tratou de sair logo da cama e se aprumar para o serviço, porque seu dia seria longo.

Certamente era a mais feliz a caminho de um hospital, mas só porque tinha sido contratada como farmacêutica do Icesp, o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo. Quis sair cedinho com bastante antecedência, mesmo tendo feito o trajeto tantas vezes, só para decorar os sentidos dos trens do metrô e não se perder. No caminho, mais uma vez pensou no quanto estava preparada para esta nova etapa de sua vida, inclusive profissional, não apenas no intuito de se encorajar, mas porque de fato sentia-se pronta.

Temendo se atrasar para o seu primeiro dia, chegou ao local tão cedo que se tivesse familiaridade já podia ir adiantando o trabalho, mas ainda faltavam algumas etapas a se cumprir, por exemplo, a integração promovida pelo RH, marcada para às oito horas. Quando subiu a escada rolante da estação Clínicas, na Avenida Dr. Arnaldo, o relógio em seu pulso direito marcava 7h27.

Embora fosse verão, Talita achou a manhã meio nebulosa. Ela escolheria inclusive o adjetivo “gelada”, porque carioca quando sai do Rio, sofre. O termômetro no canteiro da avenida revelou espantosos 23 graus. Uau! Ainda assim, era uma das poucas a usar casaco. Curioso.

Não havia muito o que fazer para passar a hora, estava numa região que basicamente só tem hospital e cemitério, então resolveu comprar café de um vendedor que expunha mil coisas penduradas num carrinho. Ele lhe entregou um copo de plástico molenga junto com o troco e disse algo que ela não entendeu. Talita tampouco ousou perguntar porque seu sotaque era uma espécie de giroflex verbal. Piscava para as pessoas que nem as luzes de um carro de polícia, soando ameaçador para umas, divertido para outras. Praticamente em todas as experiências vividas nas últimas semanas em solo paulistano ficou com a sincera impressão de que ser uma forasteira fez com que a tratassem diferente. Não mal, ou pior; só diferente.

Por isso, fez os Pinguins de Madagascar: acenou e sorriu. Tratou de caminhar ligeira até o ponto de ônibus mais próximo, localizado numa parte elevada da calçada, para fugir de qualquer diálogo. Achou o café ruim, mas tomou até o fim porque não havia lixeiras por ali e considerou mais prudente entrar depois no hospital carregando um copo vazio a um copo cheio de café frio. Enquanto bebericava em pequenos goles, pensou na irmã sem querer.

Quem se preocupa com Natal em pleno começo de ano além de Fernanda? As pessoas ainda estão naquelas de reclamar do IPVA e do IPTU, geral envolvida nos preparativos para o carnaval e a maluca pensando em dezembro – ainda que fosse apelativo falar de sanidade quando o assunto era a única psiquiatra da família. Talita virou os olhos como sempre fazia, mas desta vez riu, o coração apertadinho de saudade. Até de Fernanda, sim.

Olhou as horas no relógio que foi presente dela, no último Natal. Na ocasião Talita só queria que as horas passassem logo, já que o seu presente o bom velhinho trouxe com antecedência, através do e-mail com a confirmação de êxito no processo seletivo do hospital em outra capital. Agora, sentada sozinha, desta vez aguardando os minutos finais, pensou na família de uma forma diferente. E se não conseguisse folgar em dezembro? Era muito cedo para se preocupar?

Com certeza era. Por isso terminou o café, só deixando a vista passear entre um ônibus e outro que encostava à sua frente, com as portas elevadas, ajustadas no nível do ponto em que estava. Viu muita gente embarcar e desembarcar apoiada em muletas, em cadeiras de rodas, em familiares... Se sentiu egoísta por pensar em Natal estando cercada de pessoas tão agarradas a difíceis expectativas de sobrevida; mas em vez de se reprimir, se determinou, tão logo fosse possível, a realmente ver no trabalho a questão da folga. Não estava doente, mas na real quem é que sabe quando vai ser seu último final de ano?

Ao se levantar, já perto das 8h, Talita sentia-se mais adulta do que quando se sentou. Inclusive porque bebeu o café ruim todinho, até o fim.

Compenetrada, nem reparou que alguém usando roupas iguais às suas a seguiu de volta ao hospital, mesmo tendo saído de lá há poucos instantes. Talita tampouco percebeu o começo do diálogo entre a responsável pelo departamento de Recursos Humanos do Instituto e alguém que aparentemente não deveria estar na sala de integração, mas ao ouvir a interjeição olhou para trás, sem saber com quem exatamente a mulher falava. Não foi algo que ficou registrado em sua memória, mas é um detalhe importante desta história.

Sua rotina no novo emprego era bastante burocrática, não teria contato nenhum com paciente algum, o que de certa forma era um alívio. Talita preferia mesmo se focar em prescrições, em doses, em associações medicamentosas. Era do tipo sensível, perigava se apegar, num dos piores locais para fazer isso: no ambiente de trabalho. Precisava de foco, se seu intuito era primeiro passar a fase dos três meses, depois a outra, até o Natal. Quando foi chamada para fazer uma apresentação, sua irmã Fernanda estava novamente às voltas com seus pensamentos.

– Bom dia, meu nome é Talita Dias Andrade, sou formada em Farmácia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, estou morando aqui em São Paulo desde o começo do ano... e é isso. Me sinto feliz por estar aqui, agradeço desde já pela ótima oportunidade.

Foi uma apresentação curta, justa e suficiente para lhe render um apelido, já em sua primeira fala: “a carioca do R1”, em referência ao andar onde foi trabalhar. Mas Talita só descobriu isso quando a alcunha já tinha criado raízes e se estabelecido de maneira sólida, ao ponto de ela própria se apresentar utilizando o epíteto.

Neste primeiro dia, ao chegar ao seu posto de trabalho Talita encontrou um bilhete debaixo do teclado do computador. Era uma mensagem simples, uma espécie de boas-vindas deixada por alguém do turno anterior. Foi quando soube que havia em seu setor quem fizesse exatamente o mesmo trabalho que ela, só que à noite, por isso foi recíproca e respondeu agradecendo. Sem saber, com o gesto ela iniciou uma rotina que envolvia uma constante troca de mensagens.

Passada uma semana, o bilhete evoluiu para uma carta de uma página inteira de caderno, depois para duas folhas e logo na sequência para três, frente e verso. Rapidamente, escrever virou um hábito que Talita gostava de fazer enquanto jantava. Deixava a tevê ligada, para fazer um barulhinho no ambiente, enquanto transcrevia para o papel seus pensamentos e sentimentos, direcionados a alguém que facilmente se tornou sua amiga. Tão prazeroso quanto se comunicar só mesmo o retorno para cada uma de suas mensagens, que a deixava sinceramente contente, porque as cartas em cima da mesa de trabalho pela manhã tornavam seu dia diferente. Talita já nem se sentia mais tão sozinha em São Paulo.

Nunca existiu nenhuma pretensão de que algo do tipo acontecesse, mas passados os três meses de experiência, o que mais a animava no trabalho era encontrar a cartinha de alguém que Talita até então jamais havia visto, mas que passou a ser quem a melhor conhecia na cidade. Suas conversas eram sempre profundas, falavam sobre a vida, a existência humana, o sopro leve que é estar na Terra e o quanto isso se torna gritante quando se trabalha num lugar com tanta gente enfrentando desafios que Talita desconhecia, e que até então jamais havia pensado a respeito. Isso desencadeava uma série de reflexões que apreciava compartilhar, embora sem conhecer de verdade sua interlocutora, que assinava com o nome “Du” e usava só pronomes neutros. Du inclusive foi quem apresentou essa linguagem a ela, que conhecia pouco, ou quase nada, do universo LGBTQIAPN+.

Claro que a curiosidade a fez ir atrás do que não era dito nas cartas. Por isso, Talita procurou por sua ficha no hospital, em busca de qualquer informação adicional, vasculhou todas as redes sociais e sempre procurava saber mais a seu respeito, quando eventualmente conversava com algum colega que porventura conhecesse Du. Achou inicialmente que o apelido era o diminutivo de algum nome, por exemplo, Eduardo, mas sua primeira surpresa foi descobrir que Du se chamava, na verdade, Dulce. E Dulce era totalmente low profile, suas fotos no Instagram eram basicamente fotografias de janelas.

Em partes, sua busca se deu porque Talita se assustou ao perceber tamanho interesse em relação a uma pessoa que nunca tinha visto na vida, além do fato de também ser alguém que jamais despertaria sua atenção em outros tempos. A verdade é que na tentativa de fugir do mundo, Talita se encontrou com si mesma, mas numa versão totalmente inesperada: desprendida, fluída... sáfica. Foi então que percebeu, de verdade, que é impossível fugir de quem se é.

De outubro, quando soube da vaga e enviou o currículo, até abril, ao ser efetivada na farmácia do hospital, Talita viu sua vida mudar completamente e não apenas porque conseguiu a estabilidade que muitos duvidavam ser impossível – a começar por ela própria. E em nenhum momento, antes ou durante o começo dessa vivência, imaginou que se envolveria nesse universo vasto e diversificado que é a cultura gay. Mesmo tendo escolhido morar no entorno do Largo do Arouche, um dos pontos mais coloridos da capital paulista (porque o aluguel era mais barato, mas Du dizia que na verdade ela tinha sido levada até lá, numa espécie de montanha de Maomé purpurinada). Mesmo uma de suas irmãs sendo casada com outra mulher – talvez por causa disso, ela compreendeu depois.

Talita desejou por tanto tempo ir para longe, porque achava que só assim conseguiria crescer e se descobrir, que precisou viajar vários quilômetros para se perceber igualzinha à Fernanda, a quem adorava criticar e que sempre regozijava-se em ressaltar qualquer vacilo que a mais velha das gêmeas cometesse ocasionalmente. Reconheceu isso para si mesma passados alguns meses, quando passou a admitir a possibilidade de estar apaixonada por Du.   

Para Du, assumiu verdades que escondia até de si mesma. Começou reconhecendo ter sido preconceituosa no passado. Por birra, em partes, mas também por pura ignorância, em outras. Porque não sabia lidar com o que é diferente e, por isso, combatia, repelia. Foi o que fez quando a irmã se assumiu lésbica, um pouco antes de se casar com a mulher que até então era sua chefe, chamada Beatriz. Talita nem quis ir à cerimônia, tamanha pirraça!

Du, sempre muito amável e extremamente compreensível, a fez ver que mais importante do que reconhecer que agiu errado era começar a fazer o que é certo. Por isso foi quem mais a incentivou a tentar uma folga no Natal, data das mais concorridas no Instituto, que perdia só para o Réveillon. Sabia que a irmã de Talita programava há quase um ano um grande evento de Natal, que reuniria também a família de sua esposa, pela primeira vez.

Aquele seria o evento perfeito para Talita tentar se desculpar e se redimir de qualquer comportamento transviado do passado. E ela não sabia, mas ao tentar a folga automaticamente sentenciou Du a passar a virada do dia 24 para 25 de dezembro no R1 do Icesp – mas era um preço baixo a se pagar, Du diria depois. Valia pelo retorno que gerava, no caso, a reconciliação de Talita com parte importante de sua família carioca.

Assim como ela, Du sentia atração por quem Talita era, independentemente de seu sexo, sua identidade de gênero, sua sexualidade ou seu passado. Du aprendeu, com o cuidado gerado pela troca de correspondências diárias, a se encantar pela pessoa que se abria em linhas escritas à mão, transcrevendo com sinceridade o que dizia seu coração. Tudo o que queria é que ela ficasse feliz e sua felicidade, este ano, englobava estar com a família na noite de Natal.

Com a ajuda de Du, Talita viajou para o Rio de Janeiro em dezembro e festejou com pessoas amadas e queridas uma noite mais do que especial, em que pôde mostrar o quanto a mudança de endereço serviu também para mudá-la, em tantos níveis e em diversos sentidos. E ela igualmente percebeu que algo estava diferente quando, à meia-noite, desejou Du ao seu lado. Uma pessoa que Talita não fazia a menor ideia de como era, ou o cheiro que tinha, mas que a cativava ao ponto de arrancar sorrisos com a mera lembrança, provocando suspiros melodiosos que até então eram completamente estranhos e desconhecidos. Durante a ceia de Natal, Talita ficou refletindo que só era possível estar ali porque Du se encontrava naquele momento no hospital, a cobrindo no trabalho. Isso diz muito de uma pessoa!

Ao retornar para São Paulo, Talita finalmente se encontrou pessoalmente com Du, depois de se esbarrarem por acaso no ponto de ônibus da Dr. Arnaldo, na manhã do dia 28. Claro, depois de um ano inteiro de correspondências, o desfecho dessa história ocorreu “por acaso”, quase da mesma maneira como começou.

Nesse primeiro contato foi quando Talita soube que Du, que tinha o apelido “carinha de anjo”, a viu na manhã em que ela chegou cedo para o seu primeiro dia de trabalho, no começo do ano, e que seu retorno ao hospital serviu unicamente para acompanhá-la.

Mais tarde, nas longas horas de conversa privada no tête-à-tête, Du revelou que sentiu uma espécie de “paixão à primeira vista” e de imediato quis saber quem era a jovem que usava um uniforme ainda sem identificação, parecendo tão perdida e ao mesmo tempo tão compenetrada naquela manhã atípica de segunda-feira, carregada de neblina. Achou um sinal descobrir que trabalhariam justamente no mesmo setor, ainda que em turnos distintos/complementares. Por isso foi cortês e lhe deixou um bilhetinho de boas-vindas, desejando boa sorte. Nem esperava uma resposta, muito menos que fosse de fato se apaixonar, meses depois.

Quando as comunicações se iniciaram, Du reconheceu quase de imediato uma carapaça em volta de Talita, que ela mesma tinha construído, num esquema esquisito de autodefesa que beirava a autossabotagem. Paciente, aguardou que ela se despisse, camada por camada, se desarmando de armadilhas criadas desde a infância, sem que sequer percebesse (ao menos não de maneira consciente). Acreditava que só assim ela teria condições de entender minimamente alguém que se identifica como queer, não-binárie e transgênere. Nunca pareceu ser pedir demais porque Talita apareceu como uma espécie de mimo de Natal atrasado, depois de Du passar anos escrevendo cartinhas e mais cartinhas pedindo para que o bom velhinho lhe desse um amor de presente de Natal, em retribuição por todo o seu bom comportamento nos últimos anos. Atrasou, mas chegou lindamente, arrasando corações. O seu coração, ao menos.

Para o Natal do próximo ano, já decidiram que a programação será diferente: Talita e Du ficarão juntes, seja no subúrbio do Rio de Janeiro, seja no centro de São Paulo, seja dentro de casa ou embaixo do hospital. Porque o casal concorda que a vida é breve demais para não se criar memória junto de quem é especial – e as festas de fim de ano são perfeitas para isso. Não é à toa que Natal rima com amor incondicional.


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