A hipocrisia do dia a dia
Vivemos tempos tão atípicos que se informar é um ato que exige coragem e
estômago. Muitas vezes tenho a sincera impressão de que as notícias me caem
pior que os alimentos que não posso comer – e olha que tenho uma lista para lá
de extensa, cheia dos proibidão! Mas ao contrário da minha dieta restrita,
informação é algo com que me lambuzo ultimamente, sem nenhum tipo de moderação.
Me delicio, ainda que com a cara cheia de vergonha alheia, empanturrada de
constrangimento por atos de pessoas que, graças a Jah, eu não conheço, mas me
compadeço, pô!, sou humana, sou trouxa, tenho coração, não sei o quê. Verdade
seja dita: esses golpistas que permanecem acampados nas ruas com seus
intermináveis e vexatórios atos antidemocráticos são verdadeiras fábricas de
meme ambulantes com leptospirose. E produzem um conteúdo em massa tão ruim
quanto as fakenews do zap deles, só que a indigestão, infelizmente, quem
tem sou eu.
Num passado bem recente tive minha cota de desinformação. Virei alienada,
porque quis, mais ou menos na época em que parei de assistir televisão. Até
então minha rotina era simplesmente ver todos os telejornais que eu conseguia,
do máximo de emissoras possível, diariamente. Aí desliguei a tevê, me
desliguei, mergulhei... na verdade, afundei. Achava que boiar era lucro, em
dias de completo caos, com tempestades de todos os tipos que você possa
imaginar. Chacoalhei para lá e para cá durante tortuosos meses. Quando me
salvei, enfim, quase morri na praia! Mas acabei por desembocar numa ilha
deserta e precisei me reconstruir, à força, do zero e sem Wilson.
Aquela sem dúvida alguma foi uma época muito mais trevosa e assustadora
para mim. Estamos falando da virada 2015-2016, quando primeiro perdi o rumo e
logo depois o Brasil descarrilou. É latente a minha lembrança do dia do golpe,
eu sentada, fumando um cigarro, no pátio em frente ao apartamento da minha avó,
no subúrbio do Rio, um lugar tão simbólico, àquela altura tão diferente do que
sempre foi – já fazia uns meses que nada mais era igual, começando por mim, é
claro, mas no dia do impeachment foi foda. Na ocasião eu começava a gestar a
ideia de que o mundo tinha acabado e a gente estava vivendo um tipo de inferno
ultrarrealista, pesadíssimo, credo.
É bem verdade que, nessas horas, a gente se agarra ao que dá! Eu me
agarrei à esperança de ver tudo ruir, afinal, sou daquelas que acredita em lei
do retorno, em ação e reação e coisas do tipo. Você planta, você colhe, é bem
simples. E também um papo muito bonito que não amorteceu em nada a minha
incredulidade dos últimos anos, vendo o país se afogar, dia após dia, mês após
mês, ano atrás de ano. Ainda meteram uma pandemia na história, olha... Haja
ciência para essa pá que eu não tenho!
Uma das minhas janelas preferidas para o mundo lá fora, enquanto permaneço
trancada aqui dentro, é chamada por muitas pessoas de “bolha”, e amo!, a minha
é cheia de gatinhos! Impossível ser 100% triste vendo vídeo de gatinhos, gente!
Recomendo!, mesmo para quem não tem gato, que é o meu caso. Honestamente, não
sei o que seria de mim sem a internet, galera da última pandemia se lascou foi
muito! Confesso que gasto parte da minha banda vendo bichinhos fofinhos, meme e
política. Porque tem que ter o equilíbrio, né.
E política já tem um tempo que parece meme, mas como dito, da pior
qualidade. Os caras não são malucos engraçados! Eles são malucos armados, que
contam com a conivência da polícia que, juro, não é de hoje que critico. Minha
birra é antiga, acho errado essa militarização, essa defesa do bem em prol da
vida. Eles protegem vidraça de banco enquanto atiram contra preto, pobre,
favelado.
Vai a esquerda fazer metade do que esses arrombados da direita estão
fazendo para você ver só uma coisa! Quantas vezes fui em protestos em que a
polícia chegou já atirando! Nunca houve diálogo! Uma vez nem precisei
participar: fiquei encurralada dentro do ônibus, voltando do serviço, porque a
PM jogou gás de pimenta em olho de trabalhador, que atravessou o seu caminho.
Agora estão lá batendo continência para vagabundo, para gente da pior estirpe,
patrocinada por cidadãos que prefiro nem mencionar, para não perdermos o foco.
Bando de pau no cu... Que a justiça seja feita, amém.
Bom, mas aí com tudo isso, eis que esses dias me vi assistindo uma cena
que pode ser chamada de meme, acho que há quem considere assim, ou engraçado.
Eu fiquei estarrecida. E não sei se é a palavra que melhor exprime meus
sentimentos ao ver um sujeito pintando com canetinha azul as estrelas vermelhas
das latas de Heineken da geladeira dele. Aí o filho pergunta, depois da mulher,
o que ele estava fazendo, e o sujeito responde que estrela vermelha não entra
na casa dele. Doente! Não consigo ver graça nisso! Então fiz o que melhor podia
naquele momento: critiquei, óbvio. Julguei pacarai. “Como pode ser tão
imbecil?, coitado desse filho...”.
Minha avó costumava dizer: “não cospe para cima, menina, que cai de volta
na sua cara”. Aprendi? Não. Uma semana depois, que foi domingo passado, fui
buscar o kit da última corrida antes da São Silvestre. No site da inscrição,
mostrava uma camiseta vermelha, fiquei felizona! Quando fui ver, menina, além da
camiseta ser azul, meteram um brasão da CBF em cima e o nome do percurso pintado
em letras verde e amarelas. Era fim da Copa, mas foda-se, convenhamos. Fiquei
decepcionadíssima – tanto que nem contive minha reação, lá na hora. Minha amiga
me chamou de reacinha, e eu tive até que concordar. Me senti que nem o cara
pintando a latinha de cerveja...
Nesse inferno ultrarrealista que insisto em acreditar que vivemos desde
14 de julho de 2015, quando as trombetas soaram, oficialmente, porque na real o
pesadelo começou um ano antes disso, lá na Copa, muitas vezes me pergunto o que
será que fiz de errado para estar aqui, assim, no meio de tudo isso. E aí
comprovo que não sou evoluída porra nenhuma nessas horas, do telhado de vidro.
Quando o cuspe volta.
Na manhã seguinte, bem cedinho, saí para correr usando a camiseta do
circuito, mas da etapa anterior, quando deram uma camiseta de manga comprida em
pleno calor. No caso, cortei a manga da blusa, tomando antes o devido cuidado
de socar a outra camiseta no fundo de uma gaveta que não mexo. Não joguei fora,
porque gosto de acreditar que ainda estou um degrauzinho para cima, embora na
mesma escada que o cara que pinta cerveja, ou do povo que tenta contato com
etê, que canta hino para pneu, que faz saudação nazista à luz do dia, que se
diz pró-vida, mas é armamentista, é cruel, corrupta, suja, nojenta, hipócrita.
Lula lá! <3
Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.
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