O voto indiscreto

Na festa da democracia, aconteceu um babado forte.

No dia seguinte ao primeiro turno das eleições de 2022, Aurora acordou moída, sem sorte. Seu corpo inteiro doía, como se tivesse corrido uma maratona ou sido atropelada por um trem desgovernado, trazendo à tona o mal-estar que era interno, mas virou externo. O nervosismo instaurado na noite anterior, durante as apurações dos votos, a deixou tão tensa que a aflição quase travou seu sistema motor, provocando uma pane somatizada, generalizada. Uma dor de desamor. Sua revolta naquela manhã só não era maior que sua frustração, sua imensa decepção com praticamente metade do eleitorado brasileiro, que compareceu de maneira mal intencionada às urnas, de um jeito bem fuleiro.

Longe de achar que a democracia é um jogo, ou uma disputa em que o bem tenta vencer o mal, Aurora era adepta das discussões aprofundadas, mas não acaloradas, que embarcava sempre que sentia-se no dever de expor seu ponto de vista, sua noção de moral – com um viés de esquerda, é claro. Não tinha como ser diferente, uma vez que nasceu carente, às margens de uma sociedade maliciosa e incoerente. Acreditava, talvez por isso, que ideias divergentes resultam em decisões convergentes, e que são importantes, mesmo que este seja um processo obstante, difícil de se estabelecer e se manter. Se há uma divisão entre “nós” e “eles”, Aurora dizia que era unicamente por uma imposição vinda do lado de lá, que adora nos dividir somente para nos conquistar.

Percebia, inclusive, que há tempos se batia nesta tecla de uma dita polarização, como se os dois lados tivessem pesos iguais, como se a balança não tivesse seu fiel fraudado já na concepção. Longe de ser um duelo dentro de um ringue, ou esse tipo de competição, para Aurora a analogia tinha mais a ver com uma corrida de cem metros rasos para quem já sai na frente, de um jeito bem recorrente, e de 200m com barreiras e obstáculos para quem faz páreo diferente – e que pode até chegar ao pódio, o pessoal gostando ou não!

Falando às claras: como podem separar-se em balaios iguais quando um lado já fez tanto, com intelectuais, e o outro fez muito, só que no sentido oposto, igual um bando de animais? A medida tem que ser distinta se uma facção impõe um discurso que defende armas e tortura, atrás de uma fachada de candura, enquanto tripudia-se do sofrimento alheio, enchendo o cu de dinheiro, cobrando propina de vacina, descredibilizando a ciência, causando divergência, enfiando goela abaixo medicamento sem eficácia em plena pandemia, como se a burrice fosse contagiosa, algo que se contrai numa epidemia. Nunca antes na história desse país foi tão fácil enxergar o óbvio. É ululante, uma verdade gritante.

Para Aurora, tudo fazia mais sentido no campo mental, onde ela criava cenários conforme os pensamentos e entendimentos aportavam, mas na vida real achava difícil de pôr em prática, considerando que lado a lado se convive com gente que tem duas caras, que se faz de bacana, mas que é um grande sacana. Por causa deles, passou a ser fácil fazer essa distinção. Quem flerta com quem menospreza a existência alheia tem características bem visíveis; são todos mal educados, grosseiros, machistas, fascistas, se fazem de espertalhões, sonegam, não negam o preconceito, como se fossem perfeitos, mas mentem, omitem, traem, não devolvem o troco a mais, subtraem, trafegam pelo acostamento, sem discernimento, dão sempre um jeitinho de tirar vantagem, de ir além, corrompem e são corruptos, esses “cidadãos de bem”. A lista é extensa.

Mas Aurora era do time das otimistas, vivia ao largo de desempenhar qualquer papel de conformista. Acreditava na raça humana, confiava em todo o seu potencial de transformação, na credencial que todos carregamos com a insígnia de seres pensantes. Simpatizante, provavelmente por isso é que foi agraciada naquele fatídico 02 de outubro de 2022 com uma condição que ela jamais pediu e que depois viu que se tratava de uma quase maldição. Às 23h48, após um apagão que parece ter borrado o Brasil, a mulher percebeu ter o poder de ler o voto alheio, algo que jamais previu. Que pesadelo indiscreto!; o voto é secreto!, mas Aurora viu.

Começou no elevador com a vizinha, que perdeu a mãe para a Covid-19 em 2020 e desde então vivia com expressão de dor. Tinha cara de boazinha, só que foi com sinais de requinte que apertou o 22 na urna. Antes tentou o 17 porque era uma Olavete do tipo soturna, mas a tempo (a tempo?) se lembrou de que o número do capeta mudou. Por pouco, não anulou.

 Depois Aurora descobriu o voto do porteiro diurno que, assim como o noturno, durante a pandemia foi internado, precisou ser intubado, por pouco não perdeu o emprego e teve que pendurar o coturno! O porteiro, fogueteiro, também votou no capeta, sem parar para pensar que seu voto equivalia a uma marreta em cima de seus planos de se aposentar. Com Paulo Guedes como ministro, um sujeito todo sinistro, onde ele acha que vamos chegar?

Aurora ficou triste porque nem tinha chegado à calçada e já estava desolada; dois de dois fizeram um pacto com o título eleitoral e seguiam suas vidas como se tudo estivesse igual! Não que ela quisesse fuzilá-los com escopeta, mas reconheceu que não se aborreceria se por acaso a Terra fosse atingida por um cometa e nessa hora teve vontade de gritar, de se debater. Quis berrar para alguém “para essa porra que eu quero descer!”.

Mas daqui não dá para fugir, e para onde se poderia ir? Periga até de a pessoa chegar em Saturno, perder o segundo turno, e ainda encontrar com um bolsonarista, um falso moralista recitando aos quatro cantos um discurso que já não tem cabimento enquanto estamos cá, que dirá estando lá. Por isso, ao invés de se esconder, Aurora radiou, aureolou. Disse que até 30 de outubro vai se empenhar para gerar conscientização política e evitar que se piore a situação do país, já bem crítica. 


Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.


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