O poder (conto de mil)

Edith sentia que não aguentava mais. A cada dia sua vida parecia se tornar mais pesada, mais difícil. Tinha um emprego ruim, recebia um salário medíocre, provocava uma rotina maçante. Morava longe do serviço, consumia parte do dia nos trajetos de ida e volta para a casa, passava várias horas por dia espremida dentro de um transporte público de má qualidade, que era cheio, demorava, dava pane. Tudo isso para exercer uma labuta que, para ela, tanto faz, não acrescentava nada aos seus dias, nem aos dos outros. Seu interesse era exclusivamente no salário, mensalmente corroído pelas taxas, pelos impostos, pelas deduções obrigatórias que resultavam num dinheiro minguado e suado, que mal dava para ela se manter. Dia de pagamento, por exemplo, ao invés de ser um bom dia, representava quase um martírio. Ela queria poder viajar, conseguir trocar de cama, investir em roupas novas, mas tudo o que fazia era juntar moeda e pagar boleto. E reclamar. Edith adorava reclamar.

Dizia sempre estar cansada, garantia para si mesma que precisava mudar tudo isso – de emprego, de casa, de vida. Mas “deixa só o mês virar”, “espera só o ano acabar”, “você vai ver quando setembro chegar”, porém, eram as frases vazias que Edith repetia ao vento ao longo do tempo. No geral, permanecia fincada em seus problemas, engessada em todas as suas questões, como se os motivos de suas reclamações fossem amarras que a mantinham presa à tortura que ela mesma se impunha viver. Não reconhecia em voz alta, mas reclamar é sempre muito mais fácil do que agir. Ou mudar. E vicia!

 Nessas horas de lamúria, era inevitável não se comparar às outras pessoas, que pareciam sempre viver situações muito mais divertidas que ela. Via todo o tempo, no Instagram, registros de sorrisos que jamais haviam sequer estampado seu rosto ou seu espelho alguma vez, em décadas de vida. Edith se julgava incapaz de ser feliz, provavelmente porque nem sorrir de verdade ela conseguia! Não tinha motivos para isso, a vida não parecia ser justa.

Agora mesmo a mulher pensava com desgosto na falta de sorte que regava sua existência. Edith mantinha a cabeça encostada no vidro sujo do vagão do trem, que ia chacoalhando conforme avançava, a poucos quilômetros por hora, como de praxe. Seus olhos mal registravam a paisagem borrada fora da janela, que ia mudando na velocidade dos trilhos, como se fosse um clipe que não ornava em nada com a música baixa que tocava em seu fone de ouvido (no singular porque um dos fones tinha parado de funcionar recentemente). Edith estava ali, em corpo, sentido Barueri, mas sua cabeça a esta altura se encontrava lá longe, criando realidades inexistentes e quase impossíveis, onde ela conseguia ser plena e feliz sendo quem era. Só mesmo uma mágica fantástica resolveria sua vida de verdade, pensou, fechando os olhos cansados.

– Se você pudesse ter um poder, qualquer poder, qual poder seria? – uma velhinha lhe pergunta, a voz senil abafada pelos sons do trem. Estava sentada no banco preferencial, os braços enrugados dando a volta na barra de metal, as veias das mãos se destacando, bem vivas e pulsantes. Tinha um lenço laranja amarrado no cabelo e usava roupas com estampas contrastantes, que não combinavam entre si.

– Sem dúvida eu gostaria de ter o poder aquisitivo – Edith respondeu, sem pestanejar. Não era algo que precisava pensar muito, afinal – Gostaria de ter esse poder no sentido completo da palavra; eu adoraria ter tudo o que desejo. Acho que adquirir é um baita poder – complementou, a testa ainda colada no vidro da janela.

– Adquirir dinheiro... – a velha diz.

– Sim – Edith afirma. Sem dúvida esta seria a primeira providência: uma conta bancária gorda. Dinheiro compra tudo; até felicidade, se bobear.

– ...poder aquisitivo para comprar as coisas que o dinheiro compra... – a senhora continua, como se listasse as conquistas que um poder como aquele davam direito.

– Exatamente – Edith concorda, desta vez também meneando com a cabeça.

– ...poder da aquisição das pessoas, do amor das pessoas – a velhota fala, cerrando os olhos para Edith, ao sentir certa hesitação vinda da mulher em pé – ...tudo sendo adquirido sem o menor esforço, sem a necessidade de lutar para conquistar nada. Nadinha.

– É, mas... – Edith pigarreia.

– De todos os poderes, então, você escolheria o poder de não escolher? – a pergunta veio meio atravessada. A velhinha ou não parecia se importar em cutucá-la daquele jeito, ou disfarçava seu desinteresse muito bem – Que curioso!

– Não, eu... – Edith gagueja e se cala. Não soube o que responder.

– Você tem o poder de escolher qualquer poder, Edith. Edite seus planos, reveja seus sonhos, observe todas as armas que você tem e que têm o poder de mudar a sua vida. A felicidade não deve ser seu destino, mas sim o caminho que você deve percorrer – a velha diz, se levantando com certa dificuldade. Ao voltar a falar, teve suas palavras disputadas com o anúncio da próxima estação, vindo do alto-falante do trem – Conquiste seu dinheiro, as pessoas, o amor, a rotina que deseja ter. Escolha o poder de se mudar e então mude sua vida.

                Um chacoalhão no trem faz Edith ter um pequeno sobressalto. Quando ela se vira na direção da senhora, percebe que a mulher já não estava mais no vagão.

Sentou-se no banco vazio, sem ter certeza de que o diálogo tinha mesmo acontecido, ou se teve a façanha de dormir em pé e sonhou com aquilo, nos poucos segundos entre uma estação e outra. O fato é que as palavras daquela desconhecida foram sementes que germinaram na terra fértil do coração de Edith, que depois dessa viagem nunca mais andou de trem.

Naquele dia, Edith resolveu desembarcar da vida ruim que vivia, afirmando para si mesma que não gastaria mais os dias fazendo o que não gostava. Hoje, viaja pelo Brasil escrevendo nos muros mensagens de otimismo. Seu desejo é que todos saibam o poder de transformação que cada um carrega dentro de si, com enorme potencial de felicidade. Seu sorriso tornou-se sua marca registrada.


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