Essa barra que é gostar de correr

 

Sexta-feira, 4h40 da manhã. Lá fora, 15 graus. Um alerta laranja da Defesa Civil emitido ontem à noite chamou atenção para a queda de temperatura durante a madrugada, mas o comunicado não chegou até mim a tempo porque ontem me rendi bem cedo ao sono – dormi pouco depois das nove da noite, que nem uma vovozinha, de meias. Então não por acaso perdi o sono de madrugada; já tinha descansado bastante, mais de oito horas.

Diariamente sou acordada pela Linguiça, ou porque a doga começa cedo sua sessão coça-coça, ou porque a bonita deita para dormir comigo e, sem nenhum modo, se joga no colchão, de conchinha, me despertando automaticamente. Sou do tipo que dorme cedo, mas especialmente sou daquelas que, depois que acorda, não dorme mais. Não importa se são cinco ou sete da matina.

Mas hoje o que me acordou foi a temperatura caindo, batendo na janela. Não uma batidinha baixa, não, foi um estrondo, tatatatata. O vento forte e gelado fez o vidro se rebelar contra a veneziana, num despertador chato quando o quarto ainda estava todo escuro. Relutei um ou dois minutos antes de puxar o celular (porque a luz da tela inicia o meu processo de acordar), só para ver a hora: 4h40. “Amada, pelo amor da Deusa, não são nem cinco”, me falei, levantando com os movimentos ainda entorpecidos para ir fazer xixi. Foi como decretei a morte do meu sono: saindo da cama quentinha de duas cobertas e um travesseiro.

E o que se faz tão cedo, sem sono e no frio? Eu tomei café, sem pressa nenhuma enquanto o bairro inteiro dormia, e fui correr. Encontrei lá embaixo a moça da faxina aqui do prédio às 7h10. Ela respondeu meu “bom dia” e deu umas três fungadas. Pareceu querer puxar papo, aquela conversa típica sobre o tempo, com certeza, mas só me olhou. Estava com várias blusas, gorro e um cachecol que deixava apenas seus olhos de fora. Eu estava com camiseta de corrida e shortinho. Me sinto sempre uma piriguete das pistas.

Ontem corri 10km, então a meta hoje foi sair e correr apenas cinco. Amanhã vou descansar porque domingo tenho uma corrida de 8km na “cidade das flores”, Holambra. Vou participar de uma prova que vai passar pelos pontos turísticos, sabe-se lá a quantos graus, mas certamente em uma manhã gelada. É inverno, né.

Tenho um trajeto de treino que dá cinco quilômetros certinho, desde que eu suba a rua de casa e faça uma voltinha antes de entrar na avenida aqui do lado (são os 300 metros que sempre faltam, se não corro esse trecho). Liguei o aplicativo na calçada às 7h11 e ao guardar o celular na pochetinha, vi um cara andando com o cachorro do outro lado da rua, todo encapotado, estava até de luva. Ele não falou comigo, mas disse “que coragem”. Eu fiz leitura labial e entendi. Passei por ele e pelo cachorro contando nos dedos que horas teria que terminar o treino, considerando 35 minutos pelos 5km. Essa tem sido a minha meta ultimamente.

No dia primeiro de janeiro deste ano, quando comecei a correr, eu não conseguia correr. Então durante um bom tempo, alguns meses, diga-se de passagem, minha meta era essa: conseguir terminar pelo menos a ciclovia que tem aqui perto. Ida e volta, começando e terminando lá, dá uns três quilômetros. Quando mais ou menos comecei a ter fôlego e perna para a pista da ciclovia, passei a correr então a partir do portão do meu prédio. Com a subidinha da volta aqui da rua, ida e volta até o fim da ciclovia, são 5.1km. Em julho estipulei a meta de fazer esse trajeto em até 35 minutos. Hoje, dia 19 de agosto, fiz em 31’24’’. Num frio do cão, um vento que me forçou quase uma pisada de bailarina, só que com o corpo todo encurvado. Tem horas que me sinto um pouco atleta, mas definitivamente não nesse momento.

Começar o treino com subida é bom e ruim. É bom porque me aquece, mas ruim porque me deixa ofegante já de partida. Sou emocionada, saio em disparada, mesmo ciente de que preciso poupar energia. Cinco quilômetros parece pouco, mas é bastante! E quero deixar isso registrado porque pretendo continuar correndo. A São Silvestre em dezembro, com seus 15 quilômetros, é só o primeiro degrau de uma escada que percorre meias maratonas e maratonas. O que me impede de correr 21 ou 42 quilômetros? Se eu treinar...

Cheguei na avenida depois da curvinha e o trânsito já estava parado ali. Moro num ponto propício para encher – de carro, por causa do semáforo mais à frente, e de chuva, quando o corgo transborda. Corro na calçada sempre olhando para o chão, tenho medo de cair que nem a vizinha, que tropeçou esses dias (super desagradável cair na rua...), mas principalmente não gosto de ver as pessoas me olhando. E me olham, porque sou uma grande gostosa, mas principalmente porque sou aquela maluca correndo cedinho do lado do trânsito engarrafado, num frio acompanhado por uma chuvinha que começou já nos primeiros metros. Dei a volta no quarteirão de casa e pensei “e aí?, corro ou não corro?”. Corri.

A calçada do posto de gasolina que minha gorda cachorra me faz carregá-la em todo passeio é inclinada e na esquina sempre tenho que parar, porque muitos carros viram, a maioria sem dar seta. Tem dias que, dependendo do meu humor, dou um gritão dentro de eventuais janelas abertas: “e a seta, broxa?”, eu pergunto. Antes usava o adjetivo “pau mole”, que ofende bastante também, mas parei quando o ex-presidente da Caixa bolsominhou o termo. Cuzão! Hoje, no caso, não falei nada porque estava frio, os vidros estavam todos fechados. Aproveitei para estabelecer a respiração, já acelerada e enquanto aguardava, do outro lado vi uma tiazinha balbuciando “nesse frio...”, mas não sei se foi para mim.

A esta altura a garoa era formada por gotas que, em sã consciência, eu teria voltado para casa. Provavelmente, não fosse minha loucura, nem teria saído. Mas segui. Os semáforos foram se abrindo e fechando numa sincronia quase orquestrada com meus passos, facilitando o ritmo até parar lá embaixo, em poucos minutos e já suada. Cheguei na ciclovia eram 7h19.

Enquanto corro não dá para pensar muita coisa. Corrida é meditativa por isso: aqueles pensamentos recorrentes nessas horas não têm vez. Não dá!, preciso me concentrar na passada e especialmente na respiração. Um pouco mais de esforço nesse percurso compromete a volta, e é difícil ter que ir na maciota numa pista tão gostosa de correr! O que estraga ali são os cruzamentos que vez ou outra forçam uma parada (super bem-vindas quando o trajeto é dobrado, nos treinos malucos de 10km. É quando caminho um pouco e bebo micros goles de água. Se beber muito compromete o rolê também).

A ciclovia é dividida em cinco partes (claro). A primeira é tranquila na ida, porque o embalo é uma descidinha que a gente só percebe quando passa a pé. Tem certas inclinações que só são notáveis quando se corre. Ali é bom, o chão é bem lisinho, numa manhã fria e chuvosa como hoje nem fazem falta as árvores que protegeriam bem a ciclovia nos dias mais quentes, quando o sol dobra, refletido nos prédios espelhados. Corri ali hoje sozinha, só fui ver gente no começo do segundo trecho.

De manhã tem um tiozinho de barba grande, que usa máscara, que caminha todo rapidinho, com seus passos bem curtinhos. À tarde tem outro, que anda bem devagar com um labrador gordo, e que só muito recentemente eu descobri que na verdade são dois cachorros. Depois de tanto tempo encontrando quase diariamente, esse do cachorro eu cumprimento. “Boa!”, “bão?”, é o que falo. Imagine, se não dá para pensar correndo, falar dá menos ainda. Esse da máscara ainda não comecei a cumprimentar, mas logo vou, todo dia a gente se tromba!

A segunda pista da ciclovia é curtinha também, acho que até mais que a primeira. É uma espécie de baixada, então tem o embalo da descidinha que se emenda com a subinha, onde geralmente paro, principalmente se o semáforo do primeiro cruzamento estava aberto quando passei. Quando isso ocorre, o segundo sempre fecha, e esse é mais demorado. Vou dizer que é bom porque dou uma descansadinha básica; não sou atleta, preciso desses respiros ainda.

A terceira pista é a maior de todas, no começo tinha vários pontos de parada, eu corria lixo sim, lixo não. Parava em frente à Casa de bolo, ao Carrefour e ao posto de gasolina. Atravessava andando a rua lá embaixo, exausta. Mas hoje só fui, na cadência dos meus joelhos, que geralmente doem quando chego ali. Hoje doeu o esquerdo, mas só de leve. Aí fui até a faixa de pedestre mais devagarinho, respiração na base do inspira-inspira-expira. Tive que parar no cruzamento por causa do sinal, do outro lado é onde fica a pastelaria onde agora almoço todo sábado. Ao meu lado pararam várias pessoas com roupas coloridas, que voltaram a correr quando o sinal abriu, conversando.

Gente, como essa galera consegue correr e conversar? É tipo chupar cana e assoviar! Não dá. Bom, eu não consigo.

A penúltima pista é a segunda mais longa, tem curvas, vai tipo zigue-zague. No final tem a grade no chão, e é só nessas horas que me lembro que o córrego está correndo ali embaixo. Nos dias quentes, esses pontos enchem de mosquitinhos que, se bobear, se engole uns dois ou três, fácil. Quando cheguei no semáforo mais cedo, o termômetro da rua ainda marcava 15 graus e foi quando puxei as mangas da camiseta. Preciso urgente comprar umas regatas.

Foram pouco minutos, da porta de casa até o final da ciclovia. A endorfina deu uma liberada lá no fim, do jeito que até arrepia os braços sem querer, diferente de quando sinto frio. Me sinto poderosa nessas horas, me faz mesmo querer correr tudinho de volta, e é quando vou mais rápido, o ritmo aumenta e a distância das pernadas também. A respiração acompanha: inspira-expira, com arfadas mais longas, é quando o suor começa a molhar a gola da camiseta, antitranspirante. Volto a primeira parte e nem vejo. A segunda, vejo só o pastel, lá em cima, quando diminuo um pouco o ritmo. A terceira vem o posto de gasolina, vem o Carrefour, vem a Casa de bolo e eu lá, correndo. Meus pés: pá, pá, pá, pá, a pontinha encostando no chão, que vai passando ligeiro, dando impulso para a próxima passada, pá pá, pá, pá. Enfrentei na última parte um vento descomunal que teria me despenteado inteira, se eu não estivesse careca. A cabeça nesse ponto já toda molhada, os cotoquinho de cabelo tudo suado. Cheguei de volta ao começo da ciclovia em sete minutos. 

Corri a subida da segunda florestinha, e a descida da primeira. Corri a calçada do Burguer King desativado e fui até a calçada do McDonalds, sem parar. Suor e chuva me banhando e mal tinha dado sete e meia da manhã. Cheguei perto da esquina de casa me considerando bem treinada, e me perguntando se deveria pintar o cabelo. Lembrei de repente do cara me chamando de “senhora”, de um jeito ofensivo, quando fui retirar o kit da corrida ontem na Decatlhon que fica a seis km daqui (eu poderia ir lá correndo, se quisesse, mas fui de carro). Proporcionalmente aos meus quilômetros rodados, estou a cada dia mais perto de fazer 40 anos, e depois de um tempo sem pintar o cabelo, apresento-me inteiramente grisalha, parece até que fiz luzes.

Antes de finalizar a corrida no aplicativo, vi no chão um pedacinho de borracha, redondo. Pareceu, para mim, que a corrida me oficializou como sendo sua hoje, me entregando até um anel de compromisso, que está na falange do meu dedo desde então, onde durante muitos anos ficou um anel de coquinho, que quebrou com o tempo. Achei simbólico, como é tudo o que envolve essas corridas neste meu atlético ano de 2022.


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