Maquininha dois
Hoje venho aqui contar que raspei minha cabeça. Maquininha dois, o
primeiro excesso de cabelo arrancado na tesoura. Desta vez, diferentemente das
anteriores, não deixei uma parte, ou um lado, uma franja. Não, raspei tudo.
Demorei quase 40 anos para deliberadamente ficar careca. E agora sou aquela
pessoa que passa o dia alisando a própria cabeça.
Sei lá, cabelo parece que é tabu. Percebi isso quando comecei a pintar de
colorido, alguns anos atrás. Primeiro de rosa, depois roxo, azul, passei pelo
verde, pintei de amarelo, de laranja. Havia quem chegasse em mim e dissesse “que
lindo, adoraria ter essa coragem”. Usavam sempre essa palavra: “coragem”.
Como se fosse preciso destemor para modificar algo impermanente no corpo!
Ora, cabelo cresce, dá para pintar, dá para cortar, dá para raspar. Dá
para fazer o que você quiser! A não ser que haja um problema que impeça o
crescimento, os fios são naturalmente programados para continuarem crescendo, a
gente intervindo ou não. Então, nada impede de inovar.
Mas esse meu discurso não nasceu assim, como nasce o cabelo. Levou muito
mais tempo. Sete anos, para ser exata. E raspar a cabeça foi simbólico por
isso; vivo um momento de ressignificar as coisas, inclusive (e principalmente!)
eu mesma.
Fui casada com uma mulher que tinha o cabelo comprido. Era linda!, e extremamente
vaidosa. Do tipo que demorava duas horas só para arrumar o cabelo, quando a
gente saía para algum lugar. E não falo isso em caráter superlativo; era
literalmente uma hora no secador e mais uma hora na chapinha. Meia hora de cada
lado da cabeça, em cada uma das duas etapas, obrigatórias para qualquer que
fosse o rolê.
Foi com ela que aprendi que cabelo é só cabelo. Primeiro assim, com esse
excesso de zelo, e cuidado, e preocupação, depois da forma oposta, e cruel,
quando ela ficou doente e o tratamento a fez perder o cabelo. “É só cabelo, cabelo
cresce” quase virou meu mantra nessa época, e eu só não raspei junto porque ela
dizia que bastava uma de nós careca. Um dos meus conflitos na ocasião era achar
que ela ficou linda daquele jeito. Parecia muito errado!
Aí ela morreu e eu fiquei anos sem cortar o meu próprio cabelo. Não foi
um protesto; eu diria que foi mais uma falta de cuidado, mesmo. Uma falta de
vontade de cuidar, para ser mais exata.
Pois bem. Ontem meti a máquina dois. Eu, não. Minha nora. Porque a vida
muda, meu cabelo muda, mas certas coisas se mantêm, como o fato de eu ter uma filha,
que me visita nas férias. Ontem tirei todos os fios com o excesso das tintas
que se impregnaram em várias pinturas e deixei só os cotoquinhos de cabelo
natural. Tenho quase 100% dos fios completamente brancos, num processo
acelerado pela depressão que, fé em Jah, é algo que vou deixando pelo caminho,
porque é um fardo que há muito já se tornou pesado demais para carregar.
No fim deste meu setênio, ou, neste meu começo de nova fase, não tenho o
poder de resetar a minha vida, nem minha história, porque infelizmente a tal da
ressignificação não acontece assim. As memórias permanecem aqui, as lembranças
todas, com sua doçura e seu completo amargor. Minha incômoda zona de conforto
que me cobre do meu lodo não escapa de mim, mas tenho a capacidade de reciclar,
pelo menos, a pessoa que me olha no espelho todos os dias. De um jeito
estranho, isso me dá uma certa sensação de controle (sobre mim e minimamente sobre
minha vida). Confesso que é bastante satisfatório. Mas não tanto quanto romper
as convenções e raspar a cabeça.
Esta crônica pode ser ouvida: ouça caribu.
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