As três janelas
Já faz quase cinco anos que moro num município de porte grande, numa
cidade metropolitana. Da mesma maneira como ocorre em locais parecidos, aqui obviamente
nós enfrentamos diversos problemas relacionados à falta de moradia, quase que
na mesma proporção em que há prédios abandonados (muitos deles na área
central). Embora eu pague um aluguel barato, a área onde moro é habitada quase
inteiramente por ricos, novos ricos e pessoas afortunadas. Já mencionei
anteriormente que aqui do lado de casa tem uma loja que vende Porche, acho que isso
simboliza bem a região onde me encontro. O aluguel só é barato, segundo a
vizinha, porque o prédio é velho e está caindo aos pedaços, então o gasto com manutenção
é alto e o condomínio é mais alto ainda (sem oferecer nada em troca. Pelo
contrário, aqui não tem vaga na garagem para todo mundo e a única coisa que
cabe na área comum é um banco de praça safado). Não é à toa que sempre acho que
o prédio vai cair, em dias de vento mais forte (e aqui venta muito, morar nessa
torre é aventura demais da conta!).
Em cinco anos dá para se conhecer bem cada rachadura do prédio, qual
elevador faz mais barulho (e consequentemente qual é o que mais dá pane), e é
tempo mais do que suficiente para também conhecer os vizinhos. Afinal, é
importante saber de quem você precisa correr para subir sozinha no elevador,
tem uns trouxa que não respondem nem ao “bom dia”... E, claro, em cinco anos a
gente se familiariza até com os moradores de rua. Que não moram na rua, né, o
nome correto é “pessoas em situação de vulnerabilidade”. Mas que estão sempre
na rua, no caso, estão sempre ali no semáforo do viaduto.
Com certeza se eu não morasse aqui me chocaria um pouco com esse viaduto
em questão, que se destoa por ser bem escuro, e por concentrar uma galera de
noia, que está sempre mais ou menos consciente ou enfurecida. Não julgo. É um
pessoal que se renova, de tempos em tempos, mas que no geral é sempre o mesmo.
Eu saio todo dia, minha cã me obriga, então todo dia passo por esse povo, que
fica ali debaixo do viaduto, faça chuva ou faça sol, testemunha ocular de luzes
que mudam de cor, não sei por quê. Me pergunto se eles reparam nisso, inclusive,
ou se acham que faz parte da brisa (tem uma fileira de lampadinhas que ficam
alterando entre de cor, bem debaixo da estrutura da ponte).
Aí tem um cara que eu vejo já tem um tempo, que chama mais a atenção
porque ele anda de skate. É um sujeito novo, não deve ter nem 30 anos. Mesmo em
seus dias mais tresloucados, está sempre para lá e para cá em cima do skate – o
que é insano, a avenida aqui tem o limite de 60km/h. Galera anda chutada, o
radar é só lá para cima.
Um dos maiores medos da minha vida é ter que um dia precisar morar na
rua. Sei lá o porquê, nunca nem passei perto, mas esse foi o motivo da primeira
crise de pânico que eu tive na vida. Bizarro, porque foi numa época em que tudo
era mais do que perfeito, considerando a reviravolta que tive logo depois
(meses depois). E aí por causa desse medo inexplicável, evito olhar para quem
não tem casa. Não olho para quem está debaixo da ponte. Tenho dó, sei que não
posso ter, mas tenho, e também tenho vergonha, sei lá. É um misto de coisas que
me impede de sequer direcionar um mínimo de atenção, é gatilho para mim. Mas me
chama a atenção quando um sujeito surge sempre ora louco, ora calmo, em cima de
um skate que faz a Linguiça latir (minha cachorra não gosta de homens, nem de
skates, nem de escapamento de moto ou fogos de artifício).
E minha vira-lata é o gancho para o assunto dessa crônica, a minha quase
boa ação do dia. Mas vou dar um pequeno contexto antes de contar sobre a minha
breve interação com o mendigo skatista.
Dia desses comprei a ração errada para a doga. Fui direto no preço, tudo
está cada mês mais caro, a ração está com o valor nas alturas e não compensa
comprar saco pequeno, que é mais barato na hora que se passa no caixa, mas que
que acaba mais rápido e por isso gasto mais. Eu de verdade sofro cada vez que
preciso desembolsar 50, 60 dinheiros por saco de ração. Então invisto um pouco
mais, sempre que posso, e garanto aí bem uns dois meses de almoço e janta, com um
sacão de 12 quilos. Mas comprei a ração com o grão errado, comprei um grão
enorme, para cachorro de porte grande. A Lingui é grande só na gostosura, nos
quilos a mais que se acumulam em sua região abdominal e no entorno, redondo. E
ela me fez de (ainda mais) sua escrava, me fazendo cortar os grãozinhos de
ração a cada refeição. Se eu não cortasse, ela não comia. Até aí, tudo bem. O
problema foi que do nada, mesmo com o grão cortado em quatro, a bonita parou de
comer.
Minha catiora, que agora se chama oficialmente Linguiça Vegana (por ter
um formatinho bem similar, inclusive na cor da barriga), me fez de trouxa pela
segunda vez quando passou a me obrigar a dar “carninha” (aquela ração úmida),
junto com a ração. Mesmo com o grão pequeno, o tal do mini bits, ela quer a
carninha que, detalhe!, eu tenho que amassar com o garfo, porque a
princesa simplesmente COSPE a ração para comer só a carninha. Agora além de
tudo tive que aumentar a frequência da varreção da cozinha, que é onde fica o
potinho de comida da madame, porque o chão vive cheio de ração cuspida.
Ontem saí para comprar carninha. Compro uma quantidade mínima por semana,
que dura quase sete dias, porque às vezes a Linguicinha exige três refeições.
Fica chorando como se estivesse passando fome e só para quando a sirvo. Foda-se
se ela já comeu duas vezes. Antes de sair para comprar, na loja que fica aqui
debaixo do meu prédio, na mesma calçada, tomei o cuidado de ativar os descontos
no aplicativo. Cada centavo de economia conta, no fim gera uma unidade a mais,
quase. Quando estava saindo da loja, o moço do skate me interpelou, pedindo
ajuda para comprar ração, “a mais baratinha”, ele disse. Eu com moedas
tilintando dentro do bolso, disse que grana não tinha, mas tinha ração. Pedi
que me esperasse por dois minutos, vim em casa e enchi um saco, quase até a
boca. Coloquei em duas sacolas de supermercado para não ter o risco de rasgar, afinal
sempre vejo o skate, mas não o cachorro do cara. Não sei se o cão está longe
daqui.
Voltei até onde a gente tinha conversado, o skate encostado no ponto do
ônibus, o cara com um sorrisão no rosto e um saco de 12 quilos em cima do
ombro. Me pediu desculpas, disse que jurava que não estava sendo
mal-agradecido, falou “aquela moça comprou esse tantão de ração, vou te dar um
pouco”. Sim, ele me ofereceu parte da ração que tinha ganhado, devolvendo a
sacolinha que eu tinha enchido. “Dá para nós dois”, ele insistiu.
Uma vez conheci um hippie. Já me disseram que adoro contar essa história,
e eu gosto mesmo. Esse hippie disse uma coisa que me marcou muito e gosto de
passar para frente, porque acho um ensinamento do caralho! Dizia ele que,
diariamente, a gente tem no mínimo três oportunidades de fazer o bem. Três
“brechinha” que o universo nos dá. O intuito é praticar o bem, fazer boas
ações, a qualquer hora, e para incentivar isso, nós temos essas três janelas,
que cabe a cada uma aproveitar ou não. Quando acontece coisas tipo isso, do
moço do skate me oferecer parte do que ele tinha ganhado, é inevitável não me
lembrar do hippie.
Todo dia, recebemos no mínimo três oportunidades de praticarmos o bem.
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