De calça curta

 

Saí para comprar uma calça jeans. Foi preciso, são mais de dois anos usando só moletom, pijamas variados, “roupas de sair” que viraram “roupas de andar em casa”. E não bastasse isso, nesse meio-tempo mudei completamente meus hábitos alimentares (porque fui obrigada), comecei a correr (porque quis) e emagreci quase 20kg (sem querer, mas adorei). Então as calças antigas, além de velhas, estão largas. Cabem lá dentro duas de mim (mentira, emagreci mais foi na bochecha).

Confesso que do dia em que constatei a necessidade de sair para comprar uma calça ao dia em que saí de fato houve um intervalo singelo de alguns meses. Foram semanas de preparação, e também de procrastinação e frustração. Chegava a hora de sair e sempre acabava ficando para depois, ficando para amanhã, ficando para quando eu realmente precisasse (no caso, eu ainda não precisava). Aí aconteceu de precisar, porque esse final de semana tem festinha de aniversário do meu pai e não dá para ir de short porque lá faz frio. Nos últimos tempos, toda vez que saio, tenho usado um short 38 que ganhei da vizinha em 2020, que no começo era apertado, mas agora já dá para tirar sem abrir o zíper, o famoso fecho ecler ou “fechecler”, como diria minha mãe.

Chamei a vizinha para a empreitada. Vizinha está sem roupa também, mas porque engordou, acompanhando a tendência da maioria na pandemia, mas não posso falar dessas coisas porque ela fica triste. Então, repito o que falo ao vivo: tem é que comer mesmo e ser feliz! O resto a gente dá um jeito. Por exemplo, compra roupa uma numeração maior e foda-se. Vai comer!

Pois bem.

Sair com a vizinha é sempre uma aventura. Sabe aquela minha personagem que vive perdendo as coisas, inclusive a bombinha de asma, no meio da noite? Foi inspirada na vizinha. Vizinha ama perder as coisas! Ama! Dei uma bolsinha uma época para ela guardar os documentos e o cartão do banco, mas soube hoje que há anos ela não usa mais. Soube porque, por acaso, ela tinha perdido o cartão do banco (os documentos também, mas quando cheguei lá na casa dela, dois andares aqui embaixo, ela só mencionou o cartão). Saímos sem que ela encontrasse, inclusive.

Chegando na rua, dei a volta no carro dela estacionado e só falei “amiga!”. Enfiei o braço inteiro no interior do Marío, que é como o carro dela se chama, para mostrar, de uma maneira bem teatral e dramática, o vidro da janela totalmente aberto. Diz ela que pensou algo como “não posso esquecer de fechar”, mas não adiantou. Ela esqueceu, e ficou escancarado desde segunda-feira (hoje é quinta). Ladrão decerto não levou porque achou que era pegadinha.

Depois dessa breve emoção, rumamos sentido centro da cidade. Não vou entrar no mérito “vizinha dirigindo” porque já escrevi uma crônica falando disso. Em “Breve antologia de múltiplas personalidades de uma pessoa singular”, “A distraída do trânsito” é a quarta das cinco histórias e é minha homenagem bem humorada à sua peculiar condução, entre outras coisas igualmente únicas e particulares (se ainda não leu, recomendo).

Tem duas coisas que a gente tem que ficar atenta no trânsito: motorista de chapéu e placa de Salto/SP. Se for então um motorista de Salto/SP usando chapéu, foge! É cilada! Por sorte, não aconteceu nada envolvendo saltense (que são os piores motoristas dessa minha região), mas pareceu que todos os carros na nossa frente estavam a 20 por hora. Sair de casa é um baita teste de paciência, socorro. A vizinha me chama de “corta brisa”, mas mais quando estou dirigindo (sou daquelas que se aborrecem e xingam), então de carona no Maríozim eu pude reclamar livre e abertamente. Vai dirigir mal assim lá na casa do chapéu! Quando a gente está com pressa, parece que o mundo inteiro resolve andar em câmera lenta! Quando não está com pressa, também! Teste, como eu disse, eu falho em todos.

Mas este meu relato na verdade é para dizer que, passado muito tempo sem conviver diretamente com a sociedade (só vou ao mercado e sou antissocial, então não interajo) é com grande assombro que deixo registrado nessa crônica que mudaram as formas das calças jeans. Sim, minha gente. Eu não sabia que a nova moda era cintura de cós alto, muito pior do que as de cós baixo, que deformaram nossos corpos por anos, mas que aprendi a amar! Agora querem me enfiar cintura abaixo, quer dizer, goela abaixo, uma cintura alta que parece que você está usando um colete por baixo da roupa! Uma gole rolê, onde já se viu? Vai sentar para comer uma coisinha e nem consegue, negócio te deixa toda ereta, toda dura. Desconfortável para caralho. Vendedora falou que o modelo que me deu era “cintura média”, o bagulho quase bateu nos meus peitos! Deixou meu umbigo lá embaixo, o que que é isso? Quando foi que essa imposição chegou?, e por que ninguém está falando a respeito?

Faz dias que ando meio revoltada. Ah, é foda, né, uma semana a gente tem que ler sobre a menina de 11 anos, estuprada aos dez, impedida por uma juíza de fazer o aborto legal, previsto em lei. Na semana seguinte, a atriz que até esses dias era só uma menininha foi esculhambada porque fez o que disseram que a menina de 11 anos deveria ter feito. A gente nem respira direito e quando vê são os casos de assédio do bolsonarista safado da Caixa Econômica, que já tinha sido processado por assédio sexual no emprego anterior! Sabe?

Viver nos últimos tempos parece que anda tão difícil, tão pesado e pesaroso, todo dia é um soco no estômago diferente que a gente leva. Estômago que agora é todo encapado por um zíper quilométrico porque algum homem (certeza que isso é coisa de macho) decidiu que as calças são todas num padrão ridículo.

Uma coisa não tem nada a ver com a outra, eu sei, mas eu não podia vir aqui reclamar da dificuldade em comprar uma calça jeans, no meio desse tiroteio insano que a gente vive, sem mencionar o assunto.

No fim, a título de registro, desisti da porra do jeans. Fui numa Hering, meu cu. Vou na festinha sábado usando calça de moletom.


Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.


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