Recall
Fila do posto de saúde, quinta-feira, 6h40 da manhã. Dois machos debatem em
voz alta assuntos sobre política e economia. Um deles é aposentado, morou 35
anos em São Matheus, na zona leste de São Paulo, e está aqui no interior há 12 anos.
O outro é caminhoneiro e contou sua história de vida antes de eu chegar na fila,
então não ouvi de onde vem, nem para onde não vai (mas o ouvi dizendo que,
naquela tarde, não faria um carregamento que queriam que ele fizesse).
Importante mencionar que, além de falarem muito alto (todos na fila escutavam a
conversa, alguns sem querer, como eu), ambos estavam com o nariz para fora da
máscara. Num posto de saúde, sim, várias pessoas tossindo e espirrando, criança
chorando.
Há muito tempo eu tenho a opinião de que homem é um projeto que deu errado
e poderia ficar aqui até 2025 elencando meus diversos porquês. Mas vou ilustrar
alguns desses motivos na figura desses hómi da fila do posto. Que
falaram até que os primeiros funcionários chegassem e a porta fosse aberta. Falaram
até a hora em que separaram, na verdade, quando a cena principal aconteceu.
Ressalto primeiramente o óbvio, que é o fato de que estar numa fila como
aquela não é exatamente um bom sinal. Ninguém faz exame de sangue por hobby, ou
porque é gostoso. Eu que tenho 30 tatuagens desenhadas pelo corpo, me pelo de
medo daquela agulha enfiada na veia, sinto zero emoção comparado ao que sinto
antes de uma sessão de tatuagem, por exemplo, ou uma sessão para furar um piercing,
que também é “só uma picadinha”.
Não que estivéssemos competindo ali para ver quem está mais cagado, mas
convenhamos que bem de saúde também provavelmente ninguém está. Me incluo nessa
e incluo também os propagadores de fake news daquela fila –
principalmente eles, os especialistas em economia, que entoavam bobagens como “a
gasolina está cara por causa do ICMS”, “a culpa é dos governadores, não do
presidente”, ou “o IPVA é igual ao dinheiro do pedágio”. Mais do que a fome ou
o mal-estar que me acometia desde a hora em que tinha acordado, aquela conversa
me irritou de um tanto que é claro que comecei a reclamar dentro da minha
máscara, mas parei porque isso poderia ser erroneamente interpretado como
interesse em participar daquele diálogo ridículo que seguiu fila adentro. E eu
não tinha essa vontade, só queria que eles calassem a porra da boca.
Foram vários assuntos, diversas bobagens, mil abobrinhas proferidas num
tom irritante de macho escroto detentor do conhecimento e da sabedoria do
mundo. Você deve conhecer um macho assim, tenho certeza, que acha que sabe o
que quer que seja, só porque é macho. Pois bem.
Eis que aparece uma mulher, de repente, quando chegou a vez do caminheiro
ser atendido no guichê. E aí estranhamente o grilo falante se calou! Não
respondeu nem mesmo a hora em que tinha sido coletada a urina ou as fezes
frescas da manhã. Mas a fila inteira ouviu que ele é alcóolatra, que “curte uma
cervejinha”, todo dia, sim, a esposa gritou, porque o atendente lá dentro, atrás
do vidro não escutou. O novo mudo permaneceu de cabeça baixa e eu me controlei muito
para não sentir raiva da mulher, que respondeu tudo até o fim, os exames feitos
e não feitos, as datas das biópsias, tudo. Fiquei com pena, na real, imaginei o
inferno que não deve ser a vida de quem é casada com um sujeito assim.
Aí teve o desfecho, quando a próxima pessoa chamada no guichê foi o
aposentado de São Matheus, que se mudou para lá quando tudo era mato, nem asfalto
tinha ainda. “Data do último exame de toque?”, o moço perguntou, duas vezes, e
o velho respondeu: “ano passado”, sob as risadinhas do caminhoneiro, advertido
pela mulher que ficou dizendo “pare de rir”.
Aí a conversa final descambou para a homofobia, totalmente previsível, com
piadinhas sobre o perigo de o sujeito gostar de fazer exame retal. Sexualidade
frágil do caralho!, que medo louco que esses caras têm de dar o cu!
Tive que ficar sentada meia hora antes do exame por causa de algo que não
entendi, embora o funcionário tenha repetido quando eu disse não ter escutado o
motivo de ter que ficar sentada meia hora antes de fazer o exame. Foram minutos
preciosos de uma reflexão forçada porque meus dois celulares estavam sem
bateria, completamente descarregados. Primeiro, pensei na bizarrice que é a
tendência que se tem às vezes de responsabilizar a mulher pelos problemas, até mesmo
pelas atitudes dos homens. Eu mesma julguei a esposa do tal caminhoneiro,
solenemente, porque ela ficou segurando a bosta do cara até que ele fosse
chamado na salinha. Me corrigi, isso é importante destacar, mas aí logo depois
me lembrei de um meme que vi essa semana, que reforçou essa esquisitice imposta
pela “lógica” machista. Eram dois quadrinhos: no primeiro, um cara com camisa
da seleção brasileira gritando “mito” no meio de uma multidão de homens brancos,
com cara de enfezados. No seguinte, dava a entender que a esposa do tal
manifestante estava transando com outro enquanto o marido protestava. Era uma
charge esquerdista e isso me deixa sempre um pouco triste porque fico com a
impressão de que até “do lado de cá” a gente sofre repressão. No cartum, o
marido que é o errado, mas a mulher que é tachada de vagabunda. E me entristece
porque muitas desempenham um papel torto, de maneira passiva, caladas, sendo
babás de maridos imbecis, imprestáveis até para responderem às próprias
perguntas numa fila de posto de saúde.
Queria ver uma revolução, um despertar feminino, feminista. Mas certas
situações bobas do cotidiano parece que sempre reforçam o abismo que existe
entre a realidade que vivemos e essa guinada, utópica, que nos levaria para um
mundo mais justo e certamente mais equilibrado. E isso só não me aborrece mais do
que saber do tanto de exame que ainda vem pela frente, das várias análises
antropológicas que serei obrigada a fazer em minhas consultas e andanças pelo
SUS.
Como diria a poeta: oremos.
Essa crônica pode ser ouvida: ouça caribu.
Clique aqui para acessar o menu completo com todas as histórias.
Ajude esta escritora independente, clique aqui e faça uma doação!
Você não precisa se identificar, se não quiser! 💙