Ode ao café

Torrado, moído e forte, com pouco açúcar, bem quentinho e servido numa caneca térmica com desenho de unicórnio. Assim eram meus cafés/começos de dia, geralmente com o céu ainda escuro, porque tenho a linda mania de acordar extremamente cedo. Por ser muito metódica, também com isso havia uma rotina programada: primeiro, meio copinho para tomar o remédio em jejum. Depois, dois copos quase cheios ferviam enquanto eu enchia o filtro de barro com água da torneira, e o regador, duas vezes, para molhar as plantinhas da sala mais sedentas e algumas do quarto, acostumadas com esse mimo molhado e matinal.

O primeiro gole do primeiro café vinha sempre como um murro, um socão. Primeiro na minha cara, porque eu despertava daquele estado meio letárgico do sono, depois no meu estômago, vazio, e por fim no meu intestino, revestido de uma parede danificada por uma síndrome e habitado por soldadinhos coitadinhos que atendem pelo nome fofo de microbiota. No caso, havia baixa todas as manhãs, nessa rotina que começava sempre com o biscoito para a cã, o maiorzinho porque ela também é sistemática. Aí era a sequência xixi-lavar o rosto-sabonete e chegava a vez do segundo petisco, o mole, de maracujá, que a Nani se viciou, por causa da vizinha, que é quem abastece porque ela é de fato a responsável pela fissura da cachorra todas as manhãs – parecida com a minha, antes de tomar o bem-vindo cafezinho de bom dia.

O biscoitinho de polvilho surgia sempre só no final da caneca, retardatário num processo de ajuda na defesa do meu organismo deficitário. Nisso, é importante dizer que eu já tinha ido ao banheiro pelo menos umas duas vezes. Só para o “número 2”, sim, e em algumas dessas idas, passando meio mal. Entenda: “passar mal” é quase uma constante na minha rotina, já há algumas décadas. Sabe quando acontece aquilo de algo ser tão costumeiro que você nem percebe, ou se percebe, nem se importa? Assim eu fui, minha vida toda, quase, com o fato de ir tantas vezes ao banheiro, por causa de uma síndrome intestinal que só rotulei em 2020, que progrediu facilmente para um quadro de mal-estar, que por sua vez evoluiu para duas anemias em menos de dois anos, que gerou apatia, fraqueza, queda de cabelo e ansiedade. Eu, que sempre fui ansiosa, entrei num ciclo que começava e terminava assim. O que me aliviava eram esses pequenos prazeres da vida, como acordar com o sol e no silêncio apreciar o céu nascente, na companhia de um café justo e um baseado merecido.

Não posso dizer que minha alegria durou pouco porque foram anos assim. Que eu me lembre, só larguei o café em momentos muito específicos da minha vida, e foi por outro motivo: o cigarro, melhor amigo do meu “café lutador de MMA” desde 1998, até 2016. Mas aí atribuí na época o sofrimento à ausência da nicotina, que eu era declarada e apaixonadamente viciada. Tanto que, agora, com mais de cinco anos de abstinência, quando penso, sinto vontade de fumar um cigarrinho – que eu fingia que era o “amigo” do cocô da manhã. Mas meu elefante branco sempre foi o café, que voltou quando superei os limites de ser foda o suficiente para parar de fumar, e seguir com o cheiro do banho (e não de Marlboro) até o dia seguinte. Mas, entretanto, porém, o café, que sempre esteve num pedestal de importância nas minhas compras do mês no mercado, foi rebaixado no meu desjejum porque está me matando.

Estou sendo dramática, mas sincera também. Não aguento mais passar mal.

Mas aí tenho um grande problema porque, sem despertar como deveria, já que o café agora só vem dar seu ar da graça em meia canequinha sem graça, e só umas duas ou três horas depois que acordei, e comecei a trabalhar (careta, porque não há graça no primeiro do dia sem o primeiro do dia), fico meio zureta agora até umas hora.

No primeiro dia, esqueci de tomar o remédio. No segundo, de encher o filtro. No terceiro dia, quem ficou de fora foram as plantas, que me lembraram do dever não cumprido com uma murches que me deixou sensivelmente tocada. No quarto dia achei que ia morrer de sono, no quinto, morrer com a necessidade gritante de tomar um café. No sexto dia, fiquei triste com a nutri; no sétimo, triste comigo. E com meus pais, que me fizeram de qualquer jeito. Agora, uma semana depois da mudança, sigo me convencendo de que precisamos às vezes abrir mão de algumas coisas que amamos, nesse longo processo de caminhada que é a vida, em nome da nossa própria vida. Em prol do nosso bem-estar.

Aos cafés, bem coados e bem servidos, fortes e encorpados, saborosos e perfumados, dotados de uma potência e capacidade de apaziguar até os corações mais agitados, meu sincero agradecimento por esses anos todos me acordando de manhã. Ao cafezinho que me restou, nesse fiapo de existência de abdicações, estimo a resiliência que sempre tive, forçando a cafeína acima da minha saúde, quase. Resista, soldado, mas não mate meu exército de epitélios, por favor!

  


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