O quaternário

Meu aniversário é só no final de novembro, mas inevitavelmente já nos primeiros minutos deste (ainda) ano novo lá estava eu, às voltas com o pensamento em torno do meu quaternário. Me senti aquela gringa que faz vídeo sobre as impressões que tem do Brasil, só que, no caso, eu era uma estrangeira de mim mesma, e as reflexões foram todas feitas sem sotaque (ou melhor, tinham só o meu sotaque). Isso tudo debruçada na janela do quarto, vendo atrás da silhueta dos prédios a luz e a fumaça dos fogos de artifício que ainda pipocavam, logo depois da meia-noite, assustando minha pobre cachorrinha (que me acompanha já há um quarto dessa vida).

Na minha cabeça, sonolenta (passei a virada do ano de pijama e entre cochilos, enrolada no meu edredom azul, em pleno dezembro), o que parecia ser minha voz, repetia, num looping, num tom incrédulo, uma espécie de discurso, não muito elaborado, como: “qua-ren-ta-a-nos, putaqueopariu”. É muita idade!, são vários anos, dezenas deles!, literalmente, talvez até mais do que parecem caber em quatro décadas.

“Quatro décadas”, socorro! Falar isso em voz alta parece ainda mais assustador porque é uma forma de reconhecer o óbvio, embora externamente eu permaneça plena. Me vejo super jovem, afinal, ainda que já seja aquela tal “velha do cabelo colorido”.

Quando nasci, no longínquo ano de 1982, literalmente lá no século passado, o Brasil ainda vivia sob o regime da ditadura militar, que só terminou em 1985, quando meu irmão caçula nasceu. Acompanhei várias moedas nesse período: Cruzeiro (Cr$), em 1984, passei pelo Plano Cruzado (Cz$), em 1986, o Cruzado Novo (NCz$), em 1989, aí em 1990 voltou para o Cruzeiro (Cr$), depois mudou para o Cruzeiro Real (CR$), em 1993, até chegar, finalmente, no Real (R$), em 1994 (e foi quando as moedas voltaram. E os cofrinhos!). Lembro claramente do topete do Itamar Franco, daquele registro lendário no carnaval, da dama que o acompanhava sem calcinha. Mas antes disso, lembro do Sarney, que meus irmãos e eu por algum motivo o chamávamos de “tio”, meio alheios ao fato de que ele era presidente (e foi, até 1990). Uma das minhas lembranças mais antigas, inclusive, que é mais ou menos dessa época (e é das mais intrigantes, também, perdurou por anos) foi quando numa noite meu pai anunciou que àquela hora estava começando a Guerra do Golfo (1991), e eu fiquei pensando como era possível ter um horário para isso, o que os soldados faziam nos segundos que antecediam o início do confronto. Só depois fui estudar isso na escola, porque os livros de História que falavam disso ainda não tinham sido escritos.

Lembro de em vários momentos brincar na sala quando a tevê falava do tal movimento dos caras pintadas, e depois na escola depois aprendi a escrever e pronunciar a palavra “impeachment”, ensinada por uma professora do primário orgulhosa por vivermos a história, ao vivo, quase, com a trilha sonora do alerta do plantão da Globo. E eu estava igualmente brincando na sala, numa manhã de domingo, quando ouvi uma exclamação diferente, e vi, isso sim, em tempo real, o acidente que matou Ayrton Senna. Foi em 1994 que escrevi meu primeiro poema, que não foi exposto no corredor da escola, com os demais trabalhos dos meus colegas de sala, porque a professora na época alegou que eu tinha copiado a minha própria obra autoral. Mal sabia a infeliz que eu era só uma sementinha de caribu.

Os anos 90, nesse sentido, foram tão loucos que antes de eu completar 12 anos, jurei que escrevi um livro. E depois outro, dois anos depois, e um terceiro, antes do fim do século, bem antes do tal “bug do milênio” dos anos 2000. Aliás, embora atualmente eu jure que vivemos um verdadeiro “fim de mundo”, sobrevivi a alguns vários, os mais marcantes sem dúvida foram o de 1999 e o de 2012 (esse eu tive medo de verdade, na época minha irmã me chamou de neurótica para baixo). Agora lido com uma teoria sinistra de que, talvez, em algum desses apocalipses tudo acabou de verdade, e estamos aqui nesse limbo agora que se assemelha a um umbral (para não usar a palavra “inferno”, que soa católica demais), como se fosse algum tipo de castigo.

Religiosamente, nos últimos anos, quase os 39 inteiros, me dediquei integralmente à arte de ser eu mesma, e é maravilhoso perceber minha vida numa linha do tempo, em que pulo os degraus saltando de mim para mim, em versões minhas que se atualizam a cada segundo, como se eu brincasse numa amarelinha que começa e termina no céu (afinal, é uma dádiva ser eu mesma, e mais ainda gostar disso, mesmo tanto tempo depois).

Guiada por uma intuição assustadoramente precisa em momentos estratégicos, infelizmente (ou felizmente, vai saber) não tenho como prever como serão os próximos 40 anos, nem mesmo se chego a viver tanto. Mas romancista da vida que sou, deixo em aberto minhas páginas em branco, na expectativa de ser surpreendida, como fui até então, sempre brindada por situações mágicas e pessoas maravilhosas, hoje lembranças e ao mesmo tempo parâmetros para as aventuras futuras.

Que esta crônica abra as portas para as palavras deste ano novo. E que estas asas me levem sempre para o alto, alcançando céus desconhecidos e fantásticos que sempre são inspiração. 


Essa crônica pode ser ouvida: Ouça caribu


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