Perturbação do sossego

Ao Síndico do Edifício.

Eu, no começo desta mensagem, me apresento com meu nome inteiro, meu RG e meu CPF, e por padrão informo o endereço onde moro, ainda que meu e-mail seja direcionado ao síndico da bagaça. Já nas primeiras linhas relato que sou inquilina do referido apartamento e que venho através do presente fazer uma reclamação formal referente ao tema “perturbação do sossego”.

Faço questão de elaborar uma mensagem bem escrita e de enviá-la antes das oito, e do e-mail do trabalho, para dar mais credibilidade. O síndico já me conhece, recentemente conversamos pelo WhatsApp porque estou escrevendo um livro como ghost writer sobre sustentabilidade, e esse trabalho mexe comigo, daí ofereci ajuda para implantarmos juntos a coleta seletiva aqui no prédio, uma vez que só o meu andar recicla, e só porque eu coloquei um latão específico para esse fim (já falei também para o cara do milho trocar as sacolinhas de plástico por outras, de papel, mais ecológicas. É o mínimo, gente, nossa produção de lixo é abismal! Quase 100% dos animais marinhos já engoliram plástico, socorro!).

Para ilustrar: se lá da rua você olhar para cima, de todas as minhas janelas saem plantas, variadas (sou a louca das plantas, que inclusive é uma ótima #). As plantas saem de dentro do apartamento, porque parei de colocar vasos no beiral da janela depois que minha babosa (hoje chamada Highlander) caiu quatro andares, lá embaixo, depois de uma ventania. E não morreu!, babosas são foda!

Fico imaginando o síndico abrindo minhas correspondências revirando os olhos e pensando “xi, lá vem”. Porque escrevo usando o modelo padrão que ele mesmo me deu (e que eu revisei, porque estava cheio de erro), mas sou escritora, antes de ser moradora (e revisora!), e jamais que minhas mensagens seriam rasas. Pede para eu relatar o ocorrido?, pois eu relato. Senta aí, senhor síndico, que vou te contar o que está acontecendo por aqui, tintim por tintim.

Antes, vale uma observação: aos meus olhos, moro num prédio de malucos, com personagens caricatos e clichês de comédia pastelão, dignos de uma história, cada um. O síndico, sabe-se lá o motivo, incrivelmente não mora aqui (parece que não reside nem na cidade!), então sinto que é meu dever contar para ele qualé que é desse aglomerado de 60 apartamentos empilhados em 15 andares.

Meu e-mail bateu cedo na caixa de entrada dele, numa manhã chuvosa e escura (luzes acesas em plena manhã!, aquele céu típico de quando chove bastante e eu fico achando que o prédio vai cair). Começo informando que constantemente eu e os demais moradores deste edifício somos importunados por barulhos, tumultos e arruaças vindos do apartamento 32, onde mora um rapaz que claramente não tem condições de conviver em sociedade.

Este era um local de velhos ou, no máximo, de pessoas silenciosas, com exceção da minha vizinha direta, que tem netos barulhentos que notadamente se entediam de ficar trancafiados em um espaço tão pequeno. Ou seja, era um local de relativa paz, de tranquilidade, com vista para um bosque vasto e verde, lar de macaquinhos e aves bonitas, incluindo tucanos, que eventualmente são flagrados da janela, se exibindo no céu com seus bicos tão bem feitos. Era como aquelas imagens dos panfletos dos Testemunha de Jeová, aquele paraíso perfeito e equilibrado, as pessoas abraçando os animais (onças!). Tudo incrível, até ganharmos o novo vizinho, que chegou tão amargo quanto e durante a quarentena.

Minha vizinha and melhor amiga (que mora bem embaixo do moleque) e eu o apelidamos de “loucão do 32”, mas a outra vizinha, do quinto andar, o associa à cocaína. Eu acredito até que ele use coisas ainda mais pesadas, porque o moço é simplesmente transtornado! Vira e mexe cola polícia aqui, e isso me atrasa todos os trabalhos do dia, porque obviamente fico debruçada na janela, acompanhando a movimentação. Nessas horas, crio histórias variadas para todos os ocorridos, para as pessoas envolvidas, que sempre variam, e para os motivos que os fazem gritar tanto de noite, quebrarem todas as coisas de madrugada, e se baterem tão absurdamente de manhã. Fico olhando os carros da PM mal estacionados, os da GM em cima da calçada, os cães farejadores!!, e especialmente as policiais, claro, fardadas e de colete, com arma na cintura, aquela postura de mulher no comando da situação (amo, acho um tesão!).

E se acha que sou a única curió, se engana. O Beijoka fica sempre lá na calçada, rondando os bafos que agitam o edifício, fingindo passear com a cachorrinha que só é histérica com a Charmosa, a prima dele, que também mora aqui, mas a cachorra fica na verdade no colo dele o tempo todo. A mulher que mora no primeiro andar também é fofoquinha que monta plantão lá embaixo, eu vejo, daqui de cima, ela lá, testemunha ocular dos fatos (no último ocorrido ela quase levou uma celularzada de um aparelho que voou do terceiro andar e se espatifou na calçada, e agora a vizinha e eu a chamamos assim. “A da celularzada”). Esses dias pensei até em agitar um grupo no zap dos moradores desta Torre, para que certas informações possam ser compartilhadas. É o mínimo!, daqui quase não os escuto na calçada!

Antes de entrar no assunto, especificamente, afirmo ao síndico que tenho o conhecimento de que são aplicadas as devidas multas ao vizinho arruaceiro. Claro que sei, essas notícias correm e chegam até mim, mesmo eu sendo um tanto quanto antissocial, e entre correndo no elevador quando vejo alguém chegando, ou diminua o passo, só para subir sozinha e não ter que interagir (“calor, né?”, “chuvinha boa!”, “o tempo anda meio seco, não acha?”). Até o Jimmy Churri Boca de Caçapa, o porteiro, que nem está aqui o tempo todo, fica por dentro das coisas!, sabe até mais do que eu! Esses dias saí para correr no fim do dia e ele estava lá embaixo, igual uma planta, junto com “a da celularzada”, fora do horário do expediente (essa é uma informação importante), vendo o loucão do 32 levar enquadro da polícia, do outro lado da rua (ele atrai). O título de maior fofoqueiro do condomínio certamente é dele, tome aqui, Jimis, seu troféu (só assim, imaginário, porque a lista lá embaixo da “caixinha de natal” continua em branco, tenho dó).

O problema é que é bastante óbvio que as multas não intimidam o loucão, nem o fazem se comportar. Aí fico com um pouco de pena e raiva da mãe dele, que é quem paga o aluguel, o condomínio e as multas, porque o loucão não trabalha, passa o dia enchendo o cu de álcool e drogas mil. E esta sou eu, falando igual à vizinha de cima. Mas não me simpatizo com a cidadã a começar porque ela não usa máscara para pegar o elevador, e com negacionista, para mim, o diálogo é no chute. Não chuto, mas é minha ideologia. Só que nem entro nesse mérito com o síndico, ainda, porque esta é minha cartada final na mensagem de reclamação. Precisa do final impactante, é claro!

Então só relato o ocorrido desta madrugada, os barulhos que me despertaram às três da manhã de uma madrugada até então quieta, os gritos perturbados ameaçando alguém de morte, os ruídos de móveis sendo arremessados ao chão, as portas batendo, várias delas, e as janelas, e por fim os pneus do carro cantando a melodia macabra de quem sai dirigindo sem condições de condução.

Reforço que esses eventos são constantes, ocorrem de madrugada, aos fins de semana, e também nos dias úteis, em horário comercial, não dando paz para quem aqui vive. Conviver em sociedade é complicado, mas para tudo há um limite! Assim como eu, há mais moradores que trabalham em sistema de home office, e falando por mim, já tenho distrações o suficiente para procrastinar (passo horas olhando as árvores se mexendo lá fora, se deixar).

Sendo assim, solicito a intervenção e orientação do síndico junto ao morador, para que fatos assim não mais se repitam. Ou, sei lá, sugiro que outra pessoa seja responsabilizada, como a mãe, que aparentemente desovou o filho aqui para que a sociedade corrija o que ela falhou em educar. A culpa é dela, e ela seria ideal como garota-propaganda de comerciais que tenham como público-alvo casais que pensam em ter filhos. Parir alguém é uma baita responsabilidade!

Termino a mensagem agradecendo a atenção, quase me desculpando pelas minhas linhas, tão extensas e recheadas de detalhes que podem nem ser úteis para ele, não como são para mim. Acho por bem omitir o fato de que, desta vez, só ouvi quando o vizinho saiu, quando o barulho do carro me acordou, não vi nem que horas eram porque foram só alguns segundos desperta. Mas sou solidária à vizinha, que não dormiu depois disso, e aos gatinhos dela, que ficam agitados com as aventuras do 32.

É como se nessas horas eu virasse uma heroína que usa capa só nos dedos, e com as palavras busca retratar algumas injustiças. Ainda que se tratando apenas de confusões dentro do prédio.

 


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