Ai, ai! (conto)
Aquele
era apenas mais um dia normal na semana. Uma quinta-feira quente e ensolarada
de novembro, com sol e poucas nuvens, típica. Becca saiu da cama logo que o
despertador do celular tocou, sem prestar atenção à bagunça espalhada pelo
quarto. A caminho do banheiro, chutou um pé de chinelo que não viu. Depois do
banho fresco, às oito, se arrumou sem muita pressa em frente ao espelho. O
cabelo atualmente estava pintado de azul claro, e era apenas uma mecha,
resistente à ação de tesouras afiadas e de uma maquininha estridente, responsável
por raspar toda a parte de trás de sua cabeça e também as laterais. A franja
desfiada e azulada cobria parte da testa, eventualmente tampando de maneira
parcial o piercing acima do nariz, entre os olhos; era apenas um, entre vários
adornos pelo corpo, quase todos furados por ela mesma.
Se
inclinou sobre a pia e passou lápis e delineador pretos, puxando bem os cantos,
num estilo meio egípcio. Depois colocou os óculos de armação fina, cor de laranja,
e deu uma última olhada no reflexo antes de apagar a luz. Se sentiu linda e
pronta para o serviço, a seriedade do rosto divergindo do penteado. Tomou o
café dentro do ônibus, como fazia sempre, em pequenos goles em seu copo térmico
com estampa de unicórnio.
O
trajeto não era longo, provavelmente até fosse possível ir a pé, mas seu
expediente começava num horário já avançado, àquela hora nem tinha movimento –
de trânsito e também de passageiros –, um convite para ficar parte do trajeto
sentada. Quase sempre pegava o ônibus com o mesmo motorista, que já tinha
parado de encará-la com um olhar esquisito. Becca sabia que muitas pessoas se
chocavam com seu estilo, suas diversas tatuagens coloridas e os brincos espalhados
em lugares controversos chamavam mesmo a atenção, e não se importava com os
olhares. Dificilmente interagiam com ela; nem endereço paravam para lhe
perguntar.
Ela gostava
daquilo. Era quase uma blindagem.
Pensava
nisso quando o ônibus freou no ponto em que descia, e desembarcou. Na rua, o
sol discrepava com o tom de suas roupas escuras, assim como as unhas, que mais
combinavam com a sombra projetada pelo seu corpo na calçada, à sua frente. A
caminhada até o trabalho durou exatamente meio cigarro, e ela apagou a bituca
no poste, antes de atirar na lixeira da esquina.
O
estúdio em que trabalhava tinha um jardim colorido na entrada, com florzinhas
minúsculas que dançavam ao sabor do vento, e que combinava com as pessoas
igualmente cheias de cores que estavam sempre circulando por ali. Por ser
também a área reservada aos fumantes, o ambiente tinha sempre um ar enevoado,
que cheirava a nicotina e sândalo, por causa dos incensos que queimavam em todo
o horário comercial.
O
Estúdio Mandala era um local moderninho, com boa reputação no Google e milhares
de seguidores nas redes sociais. Os valores em geral costumavam ser mais
salgados que a média de preços da concorrência, o que acabava atraindo uma
clientela diferenciada, que adorava se ver marcada nas fotos depois, exibindo
tatuagens e piercings com sorrisos que contrastavam com as dores envolvidas naquelas
customizações em questão.
Becca
gostava da dor. Ou melhor, apreciava ver as pessoas com dor. Entendia que cada
um tinha um nível de resistência, e de sensibilidade, e por ela própria ter
vários furos e desenhos tatuados em quase todos os seus 1,66m, sabia que havia
locais mais ou menos doloridos, e se satisfazia por ser ela a responsável em
arrancar alguns gemidos. Sempre sorria por baixo da máscara de proteção, um
pouco perversa, quando ouvia alguém puxando o ar entre os dentes, daquele jeito
tão característico. Para se controlar costumava morder o lábio, depois passando
a língua pelo local, mantendo na curva da boca um sorrisinho insistente.
Sua
predileção eram os piercings de mamilo. Adorava! Primeiro porque via seios
lindos, em pleno horário de trabalho, segundo porque apreciava seios com um brinco
pendurado, e terceiro porque esse serviço sempre lhe rendia valiosos segundos
de gemidos e suspiros que arrepiavam até o cabelo que ela nem tinha na nuca.
Era dolorido, sabia bem, mas talvez menos do que muitas clientes que deitavam
em sua maca aparentavam sentir. Havia atendimentos em que até se perguntava se a
mulher estava mesmo com tanta dor, ou só querendo ser sexy. Era cada gemido! Os
homens, ao contrário, gostavam mais de transpassar uma ausência de incômodo.
Por isso preferia as mulheres. Por vários outros motivos, também.
Naquela
quinta, seu primeiro atendimento era com uma metida a engraçadinha, que a fez
rir na tarde anterior, primeiro marcando e depois desmarcando o furo. Voltou a
entrar em contato já no fim do dia, perguntando se a conversa sobre o piercing
de titânio era séria ou só “papo de vendedora”.
Becca
estava na recepção quando um carro encostou na frente do jardim, e dele saltou
alguém um pouco menor que ela, o rosto tampado por uma máscara preta. Abriu a
porta para a mulher, que parecia sorrir, de acordo com seus olhos, contraídos. Usava
uma calça jeans de cós baixo, all star e uma camiseta com estampa de pipoca.
A
cliente foi levada até o sofá da antessala e recebeu das mãos da profissional a
ficha de anamnese, que mais tarde revelou que ela tinha feito aniversário no dia
anterior. Quando entregou o papel preenchido, Becca notou algumas tatuagens
aleatórias no braço esquerdo e a ausência de aliança ou qualquer outro anel em
sua mão. Sempre procurava, como se pretendesse se relacionar com todas as
mulheres que furava no trabalho.
Sob
sua orientação, a cliente sentou na maca e puxou um dos braços para fora da
camiseta, revelando um seio de mamilo rosado e auréola pequena, livre de sutiã
e ouriçado por conta do ar-condicionado, ou pela ansiedade por furá-lo em
alguns instantes. Seus joelhos ficaram às costas de Becca, virada para o
carrinho, preparando os materiais, e depois se manteve ereta e respirando bem devagar,
quando a body piercer segurou seu seio direito. Ela tinha a pele bem branca e
uma tatuagem na lateral, pintada de preto, de uma sereia que parecia nadar em
direção ao local que receberia a joia. Quase não se mexeu enquanto seu mamilo entumecido
ganhava riscos que auxiliariam a agulha depois.
Quando
deitou na maca, seu abdome estava mais agitado, numa respiração aflita, a
tatuagem na barriga subindo e descendo num ritmo rápido, e seus pés só pararam
de mexer quando Becca parou ao seu lado, anunciando que ia fazer o furo. A
mulher virou a cabeça de lado e fechou os olhos. Aí fez um som baixinho, como
gás escapando do botijão, depois começou um “ai”, que se emendou com um “ah”,
antes de puxar mais um pouco de ar com os dentes fechados. Gemeu de um jeito
maluco quando Becca chegou na metade do trajeto, a mão firme no trabalho que
realizava. Ouviu a cliente perguntar se ainda não tinha acabado, mas a frase
nem chegou a ser concluída porque ela voltou a gemer, desta vez mais alto, soltando
um palavrão, estimulada pela ardência que agora irradiava de alto a baixo
daquela parte do corpo, tão sensível. Ao terminar, Becca estava em estado de
regozijo, e controlou o tom da voz quando respondeu que agora só faltava colocar
o piercing. Estava sorrindo, deleitada com os sons que ainda ouvia.
A
mulher voltou a gemer quando ela encostou em seu seio uma última vez, um som
mais penoso agora, quase choroso, com a respiração entrecortando a melodia que
sua garganta produzia. Falou “ai, ai” de um jeito muito sexy quando a
última bolinha foi colocada na lateral da peça, e depois de pagar já não tinha
no rosto nem um traço do bom humor que trazia, quando chegou.
Não
quis nem tirar foto.
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