Breve antologia de múltiplas personalidades de uma pessoa singular
A enxerida do milho
Todas as sextas a rotina era a
mesma: às 10h caminhava até a esquina do posto de gasolina e comprava três pamonhas;
uma para si mesma, outra para o porteiro do prédio e a terceira para a vizinha.
No fim do dia, dependendo do humor/fome/gula/e/ou/larica, voltava e comprava
mais uma – comia fria mesmo.
Todas as sextas era sempre a
mesma coisa: voltava da banquinha reclamando que Renan, o mocinho do milho, era
enxerido (ele sempre puxava papo falando sobre o clima; se tinha sido calor
durante a semana ou se ia chover no fim de semana). Ela apelidou o moço (que
segundo seus relatos, tinha engordado na pandemia, porque estava com a
barriguinha bem redondinha) de “enxerido do milho”, mas ela é que sabia o nome
dele, onde ele vendia milho em cada dia da semana, em qual cidade morava e até
que estava com namorada nova.
Mas enxerido era ele.
A insuportável do Ifood
Um dia, uma chuva forte despertou
em metade da cidade uma vontade sincera de não cozinhar. E aí meio mundo pediu
marmita no almoço, o que congestionou as ruas alagadas que só mesmo os
motoqueiros se arriscavam a avançar.
Ela pedia marmita todos os dias, no
mesmo lugar, sempre no horário certinho, cronometrado entre uma aula e outra de
inglês (ela dava aulas particulares, do sofá de sua casa). Naquele dia nem
reparou que estava chovendo!, mas notou que o almoço já estava atrasado (coisa
de quase 1h).
Sua frustração daqueles dias trancafiada
em casa virando móvel da sala foi posta para fora numa reclamação de 3’48’’,
numa ligação que fez questão de fazer para o restaurante, só para demonstrar
sua indignação com o péssimo atendimento (demonstrando, também, que todo mundo
se transforma um pouco quando está com fome).
Jurou nunca mais pedir comida lá,
mas voltou a pedir na semana seguinte (era prático, não cozinhava e a comida
era boa). Seus almoços todos chegam agora sempre antes do prazo mínimo. Não
sabemos como seu nome foi salvo na agenda do restaurante, mas desconfiamos.
A que cacareja na janela
O tédio é um imóvel grande e
vazio, que a gente às vezes faz questão de visitar. Ela praticamente morava
num, talvez porque era refém de seus dias, da rotina e da pandemia, que a
deixava sem muitas opções de lazer e passeio. Por isso as janelas eram sua
porta para o exterior, e dali acompanhava com seus dois gatos a rotina de uma
pombinha, que eles apelidaram de “Ana Maria”. A ave tinha um ninho na árvore em
frente ao seu quarto, cujo topo era visível da janela.
Ficavam os três lá, por horas,
ora miando, ora rulhando. Prrruuu, miau, prrrruuuu!
Tinha casos, nem ela sabia
explicar o porquê, mas simplesmente encostava o rosto na tela da janela e
cacarejava. Alto, retumbante: co-cóóó, co-cóóó! Muitas vezes a cachorrada
inteira da vizinhança até latia; houve casos em que alguém respondeu, na mesma
linguagem, aquela arruaça saudável. Não se sabe quem.
A distraída do trânsito
Ela sempre saía com o farol
ligado, porque não tinha sido desligado na noite anterior, e ela nem via,
porque era dia. Ela nunca via o semáforo ficar verde, porque estava sempre com
a cabeça bem longe do trânsito, perigosamente, mas também de maneira inofensiva,
se considerado que ela jamais acelerou acima da velocidade mínima das vias.
Quando começou a dar carona para
a vizinha, esta, como copilota, sempre a alertava, já ao embarcar: “ó o
farolete!”. Para os semáforos verdes, sua solução foi bater palma. Assim, no
singular, uma palma só e pronto, ela já avançava (confiava no som e nem checava
as cores do aparato lá em cima).
O hábito foi positivo, mesmo
sozinha ela já ligava o carro e dizia “ó o farolete”. O problema foi só uma
vez, quando no carro ao lado a mãe de duas crianças bateu palma, e ela avançou
no vermelho.
A que acredita
Ela não tinha muita maldade, e
por isso acreditava no que lhe diziam. Não qualquer um, mas a vizinha que comia
pamonha, a que dividia as marmitas, a que ria quando a ouvia cacarejando e que estava
sempre no banco do carona do carro que ela ajudou a dar nome, essa tinha
crédito! Tudo o que ela dizia a outra acreditava.
Morava na cidade desde o
nascimento, conhecia o bairro muito bem. Mas quando precisou de uma consulta no
posto de saúde perguntou para a vizinha (novata na área, conhecia nada dali). A
vizinha, de prontidão, apontou para uma casa azul perto da ponte. “Ali, amiga”.
Ela foi lá bem cedo, carteirinha
do SUS e documento na mão. Era um escritório de contabilidade.
Essas foram cinco breves facetas, em forma de singela homenagem, de uma mesma pessoa, única, que sempre me dá ideia de escrever.
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