Acorde, Alice

Todas as noites a rotina era mais ou menos a mesma. A preparação do sono, a arrumação da cama, aquela tentativa de prece noturna, os agradecimentos do dia interrompidos pelo sono sorrateiro, que sempre a abatia antes da hora. Há tempos que aquilo era apenas parte da rotina – como simplesmente todo o resto de suas tarefas cotidianas.

Já fazia uns anos que tinha perdido o brilho dos olhos – mais tempo do que reconhecia, menos do que parecia. Enfrentava cada dia como se fosse uma guerreira em alerta; como se a vida fosse uma batalha e ela apenas uma refém de seus dias. Se mantinha em zona de guerra apenas porque não havia rotas de fuga.

Para onde se foge, quando o que te atormenta é você?

Reconhecia em sua vida a sucessão dos fatos vividos (os anos felizes, os tristes) com a mesma sinceridade que identificava cada fragmento seu, que viveu em cada um daqueles tempos, agora organizados como filmes numa prateleira sem fim, em uma ordem cronológica passível de se embaralhar. No fundo, era uma somatória de todas aquelas personagens, e ao mesmo tempo não era nenhuma delas, especificamente (male mal era a diretora). Havia dias em que não queria ser ninguém relacionado a ela mesma. Aí se blindava das lembranças, das origens, dos traumas, e seguia firme por horas a fio, esquecida de quem era.

Era bom, equivalia ao banho de sol na prisão de sua mente!

Mergulhada em seus conflitos existenciais, nadava de braçada no que chamava de “maré de azar”, que inundou sua vida. Irônico, logo ela que se dizia uma pessoa de sorte, e sol, culpava o acaso pela escuridão que tomou seus dias. Aquele era o tipo de coisa que se esforçava para não pensar, mas invariavelmente o assunto voltava, parecia inevitável.

A sombra sempre nos segue.

Todas as noites, a rotina era mais ou menos a mesma. A preparação do sonho, a arrumação da mente, e aquela tentativa de contato, sutil, mas real, tão tênue que só vibrava ali, naquele desdobramento que ela tinha dela mesma. Sonhava com ela todas as noites, mas “desperta”, jurava que isso não ocorria há anos. Mas ela vinha, noite após noite, dia após dia, e ficava por ali, rondando seu inconsciente, emanando ondas de amor, sempre na sincera expectativa de ser receptada, de ser captada, de ser notada.

Diariamente as duas se encontravam, em encontros inimagináveis enquanto a vida era viva; que duravam milésimos num tempo que não existia, e que equivaleriam a séculos se ela fosse capaz de se lembrar, ao acordar. Não lembrava, e quando recomeçava no dia seguinte seus primeiros pensamentos eram sempre de pesar. A queria ali! Se sentia sozinha, sem ela. Convivia só, com uma falta que nada e nem ninguém nunca preencheriam; uma carência que a ausência dela provocava e fazia arder, doer, latejava sempre de maneira sentida, constante e incômoda.

Nunca esteve só, mas perdida no labirinto de sua mente, tudo o que vê são os reflexos dos seus pensamentos – um conteúdo de qualidade ruim, quase vulgar. Por isso vive triste, aquela dor latejando mais em dias específicos do calendário – perto do “aniversário de morte” dela – um nome inventado que transmite uma ideia esquisita, distorcida, até.

Essa crônica é para que se lembre, acordada, daquilo que dormindo todos os dias se esquece. Do amor que recebe, gotejante e ininterrupto, quente como um afago na alma, e de como tudo está certo e de acordo com o que deve ser, porque é assim que essa história é.

Que os que sofrem de saudade crônica possam despertar com doçura para as outras realidades, existentes!  


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