A Cigarra e a Formiga (uma releitura lésbica e fantástica)

 

Prólogo

“A cigarra passou o verão cantando, enquanto a formiga juntava seus grãos. Quando chegou o inverno, a cigarra veio à casa da formiga para pedir que lhe desse o que comer. A formiga então perguntou a ela:

- E o que é que você fez durante todo o verão?

- Durante o verão eu cantei — disse a cigarra.

E a formiga respondeu: – Muito bem, pois agora dance!”.

(“A cigarra e a formiga”, versão resumida de Esopo

Trad. de Ruth Rocha)

 

                No ano de 2020, o planeta Terra enfrentou uma pandemia quase sem precedentes, que isolou as pessoas em suas casas, afetou a indústria, fechou o comércio e mudou até mesmo a nossa maneira de trabalhar, a forma de nos relacionarmos.

                Mas até que a quarentena fosse decretada ninguém tinha como prever o que viria pela frente – e as consequências de tudo aquilo, incluindo as milhares de pessoas que infelizmente morreram de Covid-19. Por conta dessa imprevisibilidade, que começou naquele ano que virou como todos os demais (carregado de expectativa e recheado de otimismo), a Cigarra só cantou – naquele verão e em todos os anteriores – enquanto a Formiga só trabalhou (como fazia sempre, desde sempre).

                Por sorte, na releitura desta fábula conhecida no mundo inteiro, Cigarra e Formiga são mulheres, lésbicas, humanas. E por isso a história pode ser diferente, especialmente quando chega o Grande Inverno (que afeta todas as espécies). Se alguém dança, aqui, são as personagens Alícia e Antônia. Juntas.

                Também porque, devido ao aquecimento global, agora todas as cigarras são obrigadas a cantar também no inverno, pobrezinhas. Então nem mesmo a fábula original poderia ser igual, atualmente.       

     

Capítulo 1 – A Cigarra

                O dia de Antônia nunca começava antes do meio-dia, quando ela geralmente acordava. Era como se a manhã estivesse apenas começando, apesar de o sol já bater forte contra a janela de seu quarto, iluminando pelas frestas o ambiente escurecido. E “acordar” jamais era sinônimo de despertar. Por isso, Antônia enrolava na cama, depois de abrir os olhos. Às vezes pegava o celular e se distraía em alguma rede social; em outras, ficava só olhando para o teto, nenhum ponto específico, a cabeça tumultuada por diversos pensamentos.

                Antônia era uma “pessoa da noite”, como se diz. Dona de uma voz ímpar, ganhava a vida se apresentando nos barzinhos, nas baladas. Ora como convidada de alguma banda, ora sozinha, acompanhada apenas de seu violão, companheiro de anos. Por isso, quase sempre ia dormir quando a maioria das pessoas já estava acordando; seu trabalho era a diversão dos outros.

                Não tinha planejado uma carreira desse tipo. Quando criança, seu sonho era ser astronauta. Depois que cresceu, e percebeu que seria difícil trabalhar na Nasa, estudou Comunicação Social, mas queria Artes Cênicas. O pai que pagou a faculdade, e meio que escolheu o curso, por isso: Publicidade e Propaganda. Pelo menos o que aprendeu naquela época a ajudava de algum jeito, nos dias atuais.

                Quando levantava, era cotidiano tomar só um café preto; não comia. Tinha péssimos hábitos alimentares, prejudicados ainda mais por uma Síndrome do Intestino Irritável, que ela jurava que era só intolerância a glúten. Tinha crises intestinais diárias, e por isso o final do café era sempre no banheiro. Seria tudo bem, se ela não morasse numa pensão, cujo banheiro era compartilhado por pessoas que sempre eram diferentes (mudavam a cada semana). Antônia era fixa. Conhecia o dono do lugar, que lhe dava um desconto na diária.

                Tomava o café na companhia de estranhos, sempre.

Estava com 35 anos, completados no último mês de novembro. Comemorou o aniversário no trabalho: à meia-noite seus amigos fizeram contagem regressiva no bar em que ela se apresentava, como se fosse virada do ano. Ao assoprar a velinha improvisada em cima do bolo, fez um desejo para que sua vida nunca mudasse. Se sentia realizada.

Agora, em frente ao espelho manchado do banheiro, verificava algumas rugas em volta dos olhos, e marcas de expressão provocadas pela risada constante (em volta da boca havia duas linhas, como parênteses). Talvez fosse hora de comprar aqueles cremes anti-idade, mas ela ainda resistia porque aquilo era praticamente declarar que estava mesmo velha. Ou, pior ainda, que estava envelhecendo.

                Antônia tinha pressa de viver. Sentia que seus dias eram muito curtos, assim como as noites, que voavam num piscar de olhos. Por isso aproveitava ao máximo, aceitava todos os convites, convivia com pessoas que conhecia num dia e no outro já eram grandes amigos.

                Com relação a relacionamentos, teve várias namoradas ao longo da vida. Algumas, ao mesmo tempo. Atualmente estava solteira por falta de tempo para namorar; gostava de acreditar que no momento certo, alguém certo apareceria.

Essa era a lógica da vida, na visão de Antônia: tudo estava sempre previamente traçado – dos acontecimentos às pessoas, aos relacionamentos. Chamava de destino o que muitos chamam de acaso.

                A primeira vez que Antônia viu Alícia foi numa festa de fim de ano. Tinha sido contratada para se apresentar num show, e fazer a contagem regressiva perto da meia-noite. Ao gritar “feliz ano novo”, viu a mulher no canto; era a única que não sorria, ou comemorava. 

 

Capítulo 2 – A Formiga

                O dia de Alícia sempre começava antes das seis, quando o despertador tocava, de segunda a sexta. Aos finais de semana acordava no mesmo horário, mas sem querer. Assim que acordava ela já despertava e pulava da cama listando as tarefas do dia. Eram sempre muitos compromissos no trabalho, que a faziam seguir à risca uma agenda apertada e tumultuada.

                Alícia é o que chamam de “workaholic”, ou seja, viciada em trabalho. Herdeira de um negócio multimilionário, as Indústrias Formiga S.A, se desdobrava há quase uma vida inteira para se desvincular da imagem do pai, fundador da companhia, falecido há alguns anos.  

                Por isso, tinha uma média pífia de sono profundo, sofria de ansiedade e com crises fortíssimas de enxaqueca, que ela nunca revelava sentir. Seu trabalho jamais poderia ser a diversão dos outros.

                Não tinha planejado uma carreira assim. Quando criança, seu sonho era ser pilota de corrida. Depois que cresceu, e percebeu que seria difícil trabalhar na Nascar, estudou Administração de Empresas, mas queria Antropologia. O pai que pagou a faculdade, e meio que escolheu sua especialização, por isso: MBA em Gestão de Negócios e pós-graduação em Gestão de Risco e Reputação. Pelo menos o que aprendeu naquela época a ajudava de algum jeito, nos dias atuais.

                Quando levantava, era cotidiano tomar um banho rápido sempre antes do café, servido pela empregada num cantinho da mesa na sala de jantar, e contava com frutas, cereais, duas fatias de pão com frios e suco de laranja. Café lhe fazia mal, atacava a azia, que a queimava desde o começo do século. As crises diárias amenizaram quando ela cortou a cafeína, mas davam dor de cabeça, então Alícia sempre acabava escolhendo qual mal-estar ia querer para aquele dia.

                Tomava o café sozinha, como todos os dias.

Estava com 35 anos, completados no último mês de setembro. Comemorou o aniversário no trabalho: à meia-noite ainda estava envolvida com os números do fechamento; seu trabalho às vezes se assemelhava a uma bomba-relógio! Ao assoprar a fumaça do cigarro, debruçada na janela de sua sala, fez um desejo para que a vida mudasse, de alguma forma. Se sentia esgotada.

Agora, em frente ao espelho iluminado do trabalho, verificava algumas rugas em volta dos olhos, e marcas de expressão provocadas por preocupações constantes (na testa havia duas linhas, como tracejados). Nem mesmo os cremes anti-idade pareciam resolver, e isso porque usava esses produtos desde os 30 (se convenceu bem nova de que estava velha).

                Alícia tinha um pouco de preguiça de viver. Sentia que seus dias eram muito longos, tanto quanto as noites, comumente insones. Não imaginava como poderia ser diferente, pois nunca recebia convite para nada de diferente; chamava de “amigo” quem às vezes até se esquecia dela.

                Com relação a relacionamentos, teve uma única namorada ao longo da vida. Terminaram porque Alícia foi traída. Atualmente estava solteira por falta de tempo para namorar; gostava de acreditar que sua prioridade era o trabalho, e se alguém aparecesse era possível até ela nem perceber.

Essa era a lógica da vida, na visão de Alícia: nada estava previamente traçado – isso envolvia os acontecimentos, as pessoas e até os relacionamentos. Chamava de acaso o que muitos chamam de destino.

                A primeira vez que Alícia viu Antônia foi numa festa de fim de ano da empresa, ela estava se apresentando num show, fez a contagem regressiva, perto da meia-noite. Estava no canto do salão, já preocupada com o ano que nascia, mas seu sorriso lhe chamou a atenção.


Capítulo 3 – A Cigarra e a Formiga

- Feliz ano novo – Antônia fala, encostando a borda do seu copo na taça da mulher sentada no fundo do salão. Sentiu seus olhos se contraírem em sua direção, meio desconfiada, num olhar de poucos amigos. Ou como se estivesse confusa, por alguém estar falando com ela.

- Feliz ano novo – Alícia enfim responde, ouvindo o tilintar dos vidros – Parabéns pelo show, sua voz é muito bonita – ela aponta com a taça para o palco, onde Antônia estava até alguns minutos atrás.

- Grata, que bom que gostou – Antônia dá uma bicadinha no champanhe – E aí, animada para mais um ano?

- Errr – Alícia resmunga, fazendo uma careta. Antônia ri da resposta.

- Entendi – ela estava sorrindo – 2019 não foi um bom ano ou o quê?

- Não, não por isso – Alícia se cala, pensando numa resposta à altura de seus pensamentos e sentimentos – Só acho que é sempre muito igual, então tanto faz. Amanhã será um dia como foi ontem, entende?

- Não sei – Antônia estava rindo novamente. Apoiou no balcão sua taça, que estava suando – Dificilmente vivo dias iguais. Sou tipo o mar.

- Que poético – Alícia bebe todo o líquido de sua taça, e limpa a boca ao final com um guardanapo – Eu estou mais para barco, ancorado em terra bem firme.

- Mas ainda assim participa da festa de fim de ano da firma! – Antônia fala, em tom de elogio – E olha que essa é uma das mais desanimadas que eu já vi – ela sorri ao ver a mulher levantar uma sobrancelha – É sério, parece um velório. Olha: ninguém está dançando, ou parecendo se divertir!

- E dá para fugir desses eventos sociais? Ou se divertir? – Alícia retruca, fazendo um gesto para o garçom. Pegou outra taça, cheia, que ele trouxe numa bandeja especificamente para ela.

- Eu nem me apresentei, né? – Antônia comenta, depois de alguns instantes de silêncio – Muito prazer, barco ancorado! Eu me chamo Antônia – ela estica a mão na direção da mulher.

- Prazer, Antônia do Mar – Alícia segura em sua mão, gelada por conta do champanhe – Sou Alícia. A dona da festa mais desanimada que você já viu – ela encosta a taça no copo da mulher, antes de se levantar.

- Ei, espera – Antônia se levanta e vai atrás dela, que caminhava rápido em direção à saída de emergência – Desculpe, não quis te ofender, Alícia – ela segura em seu braço, de leve, e o gesto faz a outra parar. Se virou para encará-la, no meio do salão – Por favor, não quero que fique com má impressão de mim. Me desculpe.

- Tudo bem, certamente não será isso que vai estragar o meu ano – Alícia vira todo o conteúdo de sua taça. Limpou o lábio com o dedo indicador – Aproveite sua festa. Ou vá embora e aproveite o seu ano.

 

                Antônia a vê se afastar, e faz uma careta. Percebeu sua gafe de imediato, e agora se aborrecia um pouco, notando que não teria como consertar. Provavelmente nunca mais seria convidada para celebrar algum evento daquela empresa, e deu uma olhada à sua volta para ver o que perdia.

Não era mesmo o melhor dos eventos!

                Parou na frente de uma das mesas encostada na parede e pegou um enfeite, que trazia a mensagem de ano novo e o logo da empresa. Aí é que se lembrou que aquela era uma festa promovida por uma das maiores empresas de açúcar do país.

Perto dali, já dentro do elevador, blindada dos olhos alheios, Alícia se perguntava o que faria uma cantora de festa achar que sua festa era desanimada. Tinha se empenhado tanto para aquele evento! Às vezes parecia que era justamente sua dedicação o que estragava as coisas. Acontecia o mesmo na empresa; todas as pessoas se afastavam diante de qualquer tentativa de aproximação por parte dela.

Afastou o pensamento quando viu no relógio de pulso que ainda era muito cedo para aqueles sentimentos de autocomiseração. O ano de 2020 tinha começado só há cinco minutos.


Capítulo 4 – O grande inverno

Naquele ano de 2020, a Cigarra não cantou. Ou cantou: até o dia 15 de março suas apresentações aconteceram normalmente, mas os espaços foram se esvaziando, gradativamente (antes da crise sempre há o medo da crise). A partir da segunda-feira seguinte, Antônia acompanhou estarrecida pelo jornal da pensão que o Brasil entrava em quarentena. O motivo: um vírus que já tinha feito pelo menos umas dez vítimas.

Primeiro, veio o desespero: não se sentia nadinha confiante com relação ao governo, não parecia que aquela crise sanitária seria bem conduzida (sentia, com o coração apertado, que a ineficiência custaria muitas e valiosas vidas). Depois, mesmo se sentindo egoísta, se preocupou porque, com a quarentena, os bares fechariam, e assim se cessariam suas chances de trabalho. Ia se apresentar como, e para quem? Depois o problema tomou outras proporções porque Pi, o dono da pensão, avisou que sem o movimento ele seria obrigado a fechar as portas.

Entendia, em partes, que aquele era um momento delicado, que exigia de todos confiança e esperança. Mas por outro lado era intermitentemente bombardeada por pensamentos negativos, e só por isso parou de assistir televisão. Queria se alienar o máximo que pudesse.

Caminhava às vezes pela pensão vazia, os quartos ao léu, tudo quieto e triste, sem o movimento típico das pessoas. Aquele ambiente a deprimia um pouco, e ela se sentia mal por estar assim. Afinal, tinha saúde.

Um dia, lá por maio, ou abril, lembrou da Formiga, a empresária da festa de fim de ano, e imaginou como ela estaria enfrentando tudo aquilo. Afinal, a situação certamente a afetava diretamente.

 

Naquele ano de 2020, a Formiga não trabalhou. Ou trabalhou: até o dia 15 de março, em sistema normal, depois disso em esquema de home office. Junto com o país inteiro, acompanhou em choque às notícias que davam conta do coronavírus, e do lastro de morte que trazia por onde passava. Já no dia seguinte precisou acompanhar de perto todas as modificações necessárias para que a empresa não parasse, simplesmente porque seus funcionários teriam que se trancar em casa. Até porque a linha de produção não poderia parar, então os entraves eram também trabalhistas.

Primeiro, veio o desespero: desde o início nunca se soube de que forma tudo aquilo terminaria, e a que custo (parecia que todos acompanhariam a progressão da crise com o número de mortes pela doença). Depois, se sentiu egoísta porque estava preocupada com os números, e não com as vidas que certamente se perderiam (ela não confiava nadinha naquele governo). Aí o problema tomou outras proporções porque, a distância, seu poder de persuasão, que já era frágil, parecia quase nulo, e por isso ela começou a trabalhar muito mais do que antes.

Entendia, em partes, que aquele era um momento delicado, que exigia de todos empenho e dedicação. Mas por outro lado era intermitentemente bombardeada por pensamentos negativos, e só por isso começou a assistir televisão. Queria se informar o máximo que pudesse.

Caminhava às vezes pela empresa vazia, as baias ao léu, tudo quieto e triste, sem o movimento típico das pessoas. Aquele ambiente a deprimia um pouco, e ela se sentia mal por estar assim. Afinal, tinha saúde.

Um dia, lá por abril, ou maio, lembrou da Cigarra, a cantora da festa de fim de ano, e imaginou como ela estaria enfrentando tudo aquilo. Afinal, a situação certamente a afetava diretamente.

 

Capítulo 5 – Uma releitura lésbica e fantástica

A Cigarra sempre foi festeira. Nunca se preocupou em economizar, em fazer provisões, porque nunca considerou a falta. Viveu sempre desta maneira: se divertindo enquanto trabalhava, indo dormir quando todos acordavam.

A Formiga sempre foi trabalhadora. Sempre se preocupou com a reserva, com a possibilidade da falta, porque foi assim que aprendeu. Viveu sempre desta maneira: vendo os outros se divertirem enquanto ela trabalhava; trabalhava enquanto todos dormiam.

Cigarra e Formiga sempre foram opostas, em tudo. Na personalidade, no trabalho, na vida, até mesmo na maneira de lidar com um vírus desconhecido (ainda que ambas usassem máscara e fossem a favor da ciência, do SUS e da vacinação). Mas mesmo tão diferentes se viram obrigadas a enfrentar uma situação que acometeu a todos. Uma epidemia, quando chega, abala todo o mundo, embora uns sejam mais ou menos afetados.

De comum entre elas, naqueles primeiros meses de isolamento social, só o medo – do futuro, da doença e até de morrer.

Antônia e Alícia voltaram a se encontrar quase um ano e meio depois do primeiro contato. Se esbarraram por acaso, na fila da vacina. Alícia fingiu não a ver, mas Antônia fez questão de cumprimentá-la. Desde aquela virada de ano que eventualmente pensava no comentário desastroso daquela noite, e nos olhos intensos da mulher.

Graças à iniciativa de Antônia, Alícia deu seu número de telefone, e naquele dia mesmo começaram uma conversa que quase virou a noite (isso só não aconteceu porque Alícia precisava trabalhar). Era ótimo porque, por serem tão diferentes, tinham pontos de vista e vivências completamente opostas uma da outra. De alguma forma, tinham vivido de maneiras distintas até a pandemia começar, e por isso consolavam uma à outra, quando precisavam de um pouco de equilíbrio para enfrentar todos aqueles temores.

Quando a Formiga soube que a Cigarra estava com problemas (de trabalho e até de moradia) devido à crise provocada por aquele Grande Inverno, não pestanejou em colocá-la dentro de casa. E daí que eram diferentes, que até ali uma tinha trabalhado enquanto a outra só cantava? Nada as impedia de se isolarem juntas, e dançarem juntas.

E foi o que fizeram. Antônia ensejava Alícia a pisar no freio, Alícia inspirava Antônia a pisar no acelerador. Uma conduzia enquanto a outra bailava, e aí invertiam – a música, o ritmo, a cadência, o som. Foram meses enfiadas dentro de casa até finalmente saírem às ruas, naquele nublado 2 de outubro de 2021.

Ainda não havia segurança (política ou sanitária), ainda havia a obrigatoriedade das máscaras, do álcool gel, do distanciamento, dos cuidados todos (sabemos que não há tratamento precoce, que remédio de vermes só trata vermes). Mas, ainda assim, Cigarra e Formiga estavam juntas na manifestação daquele sábado, unidas com várias outras espécies, todas juntas pedindo a saída do animal que ocupa o cargo de presidência.

No coro de vaias e gritos de protesto, a voz de Antônia é a que mais se faz ouvir, a plenos pulmões, com uma das mãos em concha em volta da boca (cantando “pisa no chão, pisa maneiro, quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro”). A outra segura a mão de Alícia, que carrega uma faixa onde se lê “Viva o SUS!”.

Graças à politização (quem consegue fugir disso nos dias atuais?), nos seus dias de isolamento a Cigarra compôs várias músicas de protesto. Graças ao investimento de Formiga, aquele conteúdo inflamado se pulverizou e agora essas canções são entoadas pelas demais cigarras, onde quer que se vá – aquelas que se apresentam nos bares, com violão e voz, mas também as outras, as que cantam das árvores nos dias e noites mais quentes.

Ou seja, agora, sempre que você ouvir esse canto de cigarra, saiba que o que está sendo dito é “Fora, Bolsonaro genocida”.



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