Joice H. – A verdade sobre os fatos (Fanfic)

 

Se você está lendo isso agora, existe uma possibilidade muito grande de eu estar morta. Acho importante iniciar meu relato com este alerta. Como planejei, somente assim a verdade viria à tona, saciando a curiosidade de todos aqueles que, nos últimos dias, acompanharam pela mídia, estarrecidos, mais um capítulo bizarro da novela da nossa política nacional, que parece ter sido escrita por alguém de gosto duvidoso, que afoga em desgosto essa nossa pátria mãe, outrora gentil.

Meu nome é Joice e o que tenho para contar talvez não mude o seu dia, mas certamente mudará a história. A minha, certamente, já mudou.

É meu dever contar, não apenas para tampar alguns buracos, e esclarecer alguns fatos, graves, mas especialmente porque é a chance que tenho de revelar quem são algumas das pessoas por trás desses personagens que vemos por aí, se dizendo sempre tão preocupados com os bons costumes, com os valores cristãos, com a tal família tradicional brasileira. Você já deve ter ouvido esse papo. Essa gente, responsável por uma polarização jamais vista na história desse país, ou não tão descarada, ao menos, são os tais “lobos em pele de cordeiro”; são lobos cuidando de galinhas. São os culpados pelos desvios, pelas propinas, pelos esquemas sórdidos que, infelizmente, já viraram rotina. Já nem espantam mais, quase não chocam, nem aos incautos.

São pessoas que decidem o rumo do nosso país, e mais que isso: interferem até nas relações familiares, especialmente porque pregam uma anormalidade onde não há; vivemos quase uma volta à caça às bruxas e a magia que incomoda no século XXI é o amor. Essa gente combate o amor. São mal-amados.

Vivi isso dentro de casa, com pais extremamente religiosos que repetiam no lar o que ouviam do pastor, extremamente homofóbico. Piorou muito quando essa nova política se instalou, e ouvimos do presidente que gay tinha mesmo era que apanhar desde cedo, para se corrigir. E se agravou ainda mais quando a pandemia se instaurou. Foi quando descemos ladeira abaixo.

Eu vi a mágica acontecer com a minha família, primeiro com mil alertas sobre os perigos da internet, quando a internet chegou; depois com o estranho desaparecimento da precaução, e do bom senso, e do discernimento, com meus pais acreditando em tudo o que liam nas correntes que recebiam pelos perigosos aparelhos celulares. Eles viraram antivacina do dia para a noite, numa lavagem cerebral comandada por bandidos eleitos por pessoas ignorantes como eles. Tomaram ivermectina, nitazoxanida e azitromicina. Meu pai teve problema renal; minha mãe, problemas no fígado.  

Saí de casa numa tentativa de sobrevivência, e também por amor. Quem me salvou (e me afundou) foi Regiane, a mulher mais linda que eu já vi nessa vida, dona de um sorriso belíssimo que me encantou à primeira vista, quando nos conhecemos numa festinha aleatória. Só quem mora em Brasília sabe como esses eventos nos salvam do tédio. Regiane me salvou de muitas coisas, acho que até de mim mesma.

Ela nem tinha sido convidada para a ocasião, alguém que estava por ali a conhecia. Coisas do destino. No fim, ela acabou ficando, e nós também. Naquela noite nos beijamos até o dia amanhecer, e só na despedida ela me disse que se chamava Gigi.

Gigi. A dona do meu coração.

Demorei uns dias para saber dela o seu trabalho, e ela até me deu a chance de pular fora, mas eu não quis. Eu a quis. Me sentia entorpecida, e ela vendia drogas.

Minha concepção de traficante era estilo aqueles caras que aparecem na televisão, que ficam à espreita, de olho na polícia, têm pinta de bandido. Muito diferente do estilo de Gigi, que frequentava festa de grã-fino e faturava às vezes em uma noite o que meus pais levavam até dois meses para juntar. Ela se vestia com roupa de marca, estava sempre de unha pintada e pilotava um carrão. O cabelo estava cada hora de uma cor. Quando nos conhecemos, estava azul. Quando ela me pediu em namoro, estava roxo. Quando fomos morar juntas, estava rosa.

Gigi estava com cabelo laranja quando comecei a desconfiar que estava sendo traída. Eu já meio que conhecia a rotina dela, mais ou menos, porque cada dia ela tinha uma entrega num ponto diferente da cidade, e decorava de cabeça os endereços, os trajetos, quem tinha pagado com PIX, quem ia pagar na entrega. Uma memória invejável para quem fazia uso de cannabis há tanto tempo. E ela vendia coisa fina para gente importante, que aparecia também na tevê só que engravatado. Com a cabeça cheia de drogas, que só eu sabia. E Gigi, que vendia.

A galera é frita na cocaína. Os políticos amam!

E esse é o problema. Porque são políticos que de dia vociferam um discurso antidrogas inflamado, e de noite enfiam os narizes, sem pudor, em linhas brancas de drogas sintéticas esticadas em cima de espelhos. Mas acho que eles nem sequer veem os seus próprios reflexos ali.

Todos eles contam com a praticidade de saciar seus vícios bem longe dos olhos e da curiosidade alheia, não se dando nem ao trabalho de levantarem suas bundas brancas para isso: Gigi sempre foi uma fornecedora delivery. Conhecia, por isso, corredores quase secretos dentro do Congresso, de prédios estatais cobertos até as paredes por um carpete que exala poder. Entrava e saía e quase ninguém nem via. Conhecia todos os acessos sem câmera. Era VIP por onde andava.

E por isso achei estranho quando as entregas começaram a demorar. Eu sabia que ela atendia com certa regularidade uma deputada ex-bolsonarista, Gigi já tinha até me contado que a mulher morava no sexto andar, e como ela fazia para entrar sem ser flagrada por nenhuma câmera – outra façanha de Gigi: decorar os pontos cegos dos lugares que frequentava.

Eu já tinha visto a deputada em entrevistas, ela era líder do governo, antes de rachar com o Capetão. Mudou o discurso de repente, coisa comum entre os brasilienses de mandato. Eles mudam de ideia mais rápido que os demais mortais.

Minhas suspeitas com Gigi se confirmaram numa noite de sábado, quase madrugada, que ela chegou mais tarde, quando olhei as mensagens que ela e minha xará trocaram, enquanto Gigi estava no banho. Mensagens de sacanagem, quase todas. Despudoradas, imorais, até. Não tive estômago para ler. Minha reação foi sair àquela hora, nem vi nada, só peguei as chaves do carro e fui da Asa Norte à Asa Sul em minutos, até aquele apartamento funcional onde a deputada provavelmente estava dormindo.

O que você faria se tivesse a oportunidade de fazer justiça com as próprias mãos, e se vingar de alguém assim?

Eu entrei na casa dela sem ela perceber. Fui até  quarto do casal (sim!, ela é casada!) e enchi a mulher de porrada. Certeza que quebrei uma costela. Dias depois (porque ela é cagona, acordou atropelada e nem anotou a placa do bonde), quando foi ao médico e a história veio a público, soube que ela quebrou dois dentes. Fraturou a mandíbula. Eu teria batido mais, mas tinha que guardar energia para Gigi.

Na volta para casa, ainda um pouco transtornada, com as mãos doendo dos socos bem distribuídos num rosto humano de traíra, mandei Gigi às favas. Não me daria nem ao trabalho de voltar para casa e explicar o que tinha acontecido. Abandonei o carro dela perto do Museu Nacional e segui de Uber.

Joice agora está indo na tevê dizer que foi atacada, mas que não sabe o que ocorreu; que acordou já toda machucada, como se alguém tivesse entrado em sua casa, mas não há registro nas câmeras de segurança e a polícia legislativa não encontrou nenhum indício de arrombamento.

Mil teorias já surgiram, mas nenhuma fala a verdade.

Agora você sabe o que foi que aconteceu.


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