Mar de gente

 

Quando eu era jovenzinha, lá na minha adolescência, me apaixonei pela banda Legião Urbana. Renato Russo na época ainda era vivo (eu estava na sétima série quando ele morreu). Quem me apresentou foi a minha melhor amiga naquela época, e uma das lembranças mais marcantes que tenho é da gente numa casinha da árvore num camping, bebendo vodka direto na garrafa e cantando Legião. Nesse dia uma outra amiga, que estava junto, me queimou com cigarro no braço (e fez uma marca igual nela mesma, em seguida). Ainda tenho a marca. A amiga se foi naquela primeira onda bolsonarista, infelizmente (é triste ver no que as pessoas se transformam, às vezes! Ou constatar o que sempre foram, e o amor é que não deixava ver, relevava).

Minha primeira tatuagem foi o violãozinho, símbolo da Legião Urbana. Clássico! Antes disso eu usava o nick “Legionária”, nas salas de bate-papo para lésbicas da UOL (ah, os anos 90!). Para quem não sabe, lá era onde a gente se encontrava, a sapataiada toda, as de dentro e fora do armário, era um vucovuco maravilhoso. Isso quando a internet era tudo mato.

Sempre fugi dos clichês, apesar de ser muito clichê gostar de Legião naquela época, e mais ainda na virada do século, depois que perdemos um grande poeta chamado Renato Manfredini Júnior. Mas nas festinhas, as mina que comandavam o violão cantavam sempre as clássicas, e de todas uma frase de uma delas sempre me chamava a atenção. Diz: “já morei em tanta casa que nem me lembro mais”. Eu achava o máximo (eu também morava com os meus pais)! Até ali, tinha morado só em três casas, e lembrava muito bem de pelo menos duas delas (a primeira foi só no meu primeiro ano de vida).

E parece que fiquei tão fixada nisso, que assim que pude bater asas, voei, e morei em várias casas, de várias cidades, em vários estados. Foi quando me denominei “borboleta”, e fui visitar jardins maravilhosos, sem nunca fincar raiz (afinal, não era árvore!). Mas tudo muda quando a vida muda, até mesmo a gente, e eu precisei mudar, depois de algumas mudanças nos planos que eu tinha estabelecido para a minha vida (profissional, mental). Quis fincar raiz, mas talvez só porque estava cansada. Aí me mudei para um apartamentico numa cidade metropolitana que, sinceramente, só saio quando for para morar numa chácara, no meio do mato, aqui perto, num município de nome engraçado (para mim, pelo menos, que tenho sotaque de quase carioca, no meio do interior paulista).  

Cheguei aqui no final de outubro de 2017 e para ser bem sincera, tem muita coisa que ainda não consegui me acostumar. Viver em sociedade é um desafio, ainda mais verticalmente falando. Moro num prédio de 15 andares, quatro apartamentos por andar, então são 60 casinhas no mesmo endereço onde chegam minhas comprinhas da internet. Não é muito louco? E a minha rua, mesmo pacata, escondidinha à beira de uma avenida movimentada, tem vários prédios. É muita gente morando nesse endereço! Da janela da sala e do quarto eu consigo “curiá” a vida de muita gente, porque há vários prédios à minha volta. Várias janelas, diversas varandas. Rotinas que eu gosto de vigiar, sempre que perco tempo observando a vida de pessoas que nem conheço, e que provavelmente nunca vou conhecer. À noite, tem vezes, que pego até binóculos para ver melhor.

Tem um prédio amarelo aqui atrás, que toda noite um casal senta junto na varanda. Eu já criei várias histórias para eles, minha preferida é que o casal é sapatão, na verdade são duas velhas que moram ali há 30 anos, e sentam na varanda para fumarem juntas um baseado, disfarçado com o cheiro do incenso que elas sempre queimam – sempre de sândalo. Já criei histórias também para a vizinha de dois andares abaixo, que desde o começo da quarentena faz caminhadas diárias na sua minúscula varanda. Ela anda e eu olho. Já são meses nisso.

O desafio de viver em comunidade se intensificou com o isolamento social, claro. Eu que sempre trabalhei de casa, ouço muito mais barulhos/ruídos/gemeções agora. O dia começa com o meu silêncio sendo interrompido por alguém que sempre acorda de mau humor, e abre a janela com uma violência que eu sinceramente não sei como o vidro nunca quebrou. Perto da hora do almoço alguém sempre arrasta um botijão de gás (é o que parece ser!), e isso faz minha cã latir. Todo dia, sim. Ela late sempre que sento para comer também, aí é ela latindo e eu falando “para, Mamãe!” (o que significa que eu sou ruído para os vizinhos também, que além de tudo devem pensar que sou criada por uma selvagem). À tarde temos o pianista, o Chopin do condomínio. Podia ser pior? Claro! Mas é um saco também ficar horas com o plimplimplim alheio. Sempre tem alguém furando uma parede, sempre. Ou pregando. Mesmo quando não pode, aos finais de semana, ou depois das dez da noite. À noite o sono é embalado por um arrastar de móveis que não entendo, e o liquidificador de algum notívago. E pensa que acabou? Acabou nada! De madrugada há sempre os Picadinho na fodelança característica deles, que sempre me acordam.

É sempre nessas horas que me controlo, porque sou tomada por uma vontade irresistível de ir para a janela e berrar, bem alto, só para acordar a vizinhança inteira, só para ver as luzinhas se acendendo nos prédios, como se fosse natal. Só para ver se no silêncio eu realmente não ouço meus gritos!

 

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