Por amor (conto)
O começo
Havia na cidade um terreno grande, com uma casa muito antiga que, segundo
boatos, era mal assombrada. Tinha a pintura toda descascada, alguns vidros das
janelas de cima eram quebrados, e no muro crescia um tipo de planta que já
devia estar com uns cinco centímetros de espessura. Mas aquele não era um local
abandonado. Ali morava Jairinho, um menino não-binário.
A casa apareceu em sua vida nesses golpes de sorte chamados “herança”. Seu
tio-avô construiu, numa época em que não havia nada ali, e murou um bocado de
terra que ninguém reclamou. Hoje ocupava uma esquina inteira do centro de uma
cidade pacata, que de certa forma se desenvolveu ao longo dos anos ao redor do
casarão.
Todos que ali viveram, ali morreram.
No terreno às vezes aparecia um sujeito chamado Marechal (era assim que
ele se apresentava). Mancava de uma perna, era cegueta de um olho, e falava de
um jeito enrolado que mais parecia um grunhido. Jairinho o entendia, ou
acreditava que sim, e o deixava ficar ali, sempre que por ali ele passava.
Marechal era um caminhante, desses que a gente vê andando no meio da estrada e
se pergunta de onde veio e para onde vai. Não tinha rumo, mas acabava que
sempre voltava para aquelas bandas, como atraído magneticamente, e ficava uns
dias no terreno de Jairinho. Ali ganhava comida e bebida, além de um teto
improvisado com telhas de eternite e uma rede que ele sempre encontrava só
naquele local.
De tempos em tempos Marechal sumia, depois voltava, ora mancando mais, às
vezes com um dente a menos, um olho roxo, uma cicatriz. Só Deus e Marechal
sabiam as coisas pelas quais ele passava em suas andanças. Aquele terreno
uivante era um espaço seguro, quase sagrado, que Marechal sempre agradecia, mas
Jairinho nunca respondia de acordo (possivelmente porque não o entendia).
Mal sabia o homem que aquela provavelmente seria sua última vez ali. E os
eventos que mudaram toda essa história começaram ainda de manhã, quando
Marechal viu as duas mulheres chegando. Já as tinha visto em outras ocasiões;
elas faziam Jairinho rir e fumar. As duas, porém, nunca tinham visto o sujeito
ali. Algo bastante usual para Marechal, já acostumado com a invisibilidade que
carregava, mesmo sem usar nenhuma capa, justamente por não ter nenhum poder.
Mas Marechal passava ao largo da autocomiseração. Ele se amortecia na
cachaça, e naquele torpor não ficava com o raciocínio muito certo – o que acaba
sendo uma ótima defesa para quem enfrenta a vida desprovido de armas. Mas isso
não o deixava cego. Nem surdo. E ele ouviu o grito de Jairinho, que rompeu com
a calmaria daquela manhã de poucas nuvens.
- Eu não aguento
mais! – ele gritou, e por breves
instantes Marechal se perguntou se aquilo era real. Era!, e por isso caminhou
puxando a perna até a direção da voz.
Viu pela janela que estavam os
três na garagem, que era cheia de coisa amontoada em caixas e prateleiras, e tinha
um cheiro forte de poeira e coisa guardada. Jairinho era o único deitado, no
meio das mulheres, e se debatia como se estivesse com dor. De ébrio, Marechal
ficou sóbrio, porque uma das meninas, a mais magrinha e franzina, depois de
mexer na caixa de ferramentas, apoiou a ponta de uma chave de fenda na têmpora
de Jairinho, e martelou.
O meio
- Até onde você vai
por amor? – Jéssica quis saber.
- Como assim? –
responde Alex, com outra pergunta – Eu vou até o final, ué. O amor é um caminho
sem volta, baby.
A menina achou aquilo poético,
profundo, mas também, lá no fundo, um pouquinho preocupante. Alex era o tipo de
menina destemida, desbravadora mesmo, que enfrenta as coisas sempre sem
pestanejar – ao contrário dela mesma, que se duvidar tinha medo até da própria
sombra.
“O amor é um caminho sem volta”, ela repetiu, mentalmente.
O casal ainda estava na cama,
mesmo já passando das 10h da manhã daquele sábado de poucas nuvens. Um dia
preguiçoso que combinava com o humor delas, que tinham acordado há alguns
minutos, após uma semana inteira levantando cedo para o trabalho. Glória, para elas,
era poder dividir a primeira caneca de café e o cigarrinho da manhã em meio aos
lençóis, sem pressa de levantar (mesmo quando tinham compromisso, que elas
sempre chegavam atrasadas).
Estavam juntas já há alguns anos,
eram parceiras e amigas e tinham gostos parecidos – elementos essenciais para
uma boa relação. Jéssica encontrava em Alex o arrojo para encarar seus medos, e
Alex tinha em Jéssica o aconchego encontrado só nas figuras das melhores
amigas. O mundo ao lado de Alex era divertido e cheio de aventuras; o universo
com Jéssica era sereno e tranquilo. O sexo era satisfatório, então aquele
namoro perduraria a vida toda – a não ser que uma delas, sei lá, matasse
alguém. Mas talvez nem isso as separasse.
Para aquele dia tinham combinado de visitar Jairinho, amigo de anos.
Jéssica o conhecia desde o jardim de infância, mas ele era o melhor amigo de
Alex. Tinham se conhecido graças à garota e pareciam um o reflexo do outro –
embora em mundos invertidos. Ela sempre completava a frase dele, e vice-versa,
porque seus pensamentos de alguma forma se combinavam; pensavam juntos. Seus
sentimentos também eram entrelaçados, tipo almas gêmeas. Seriam um casal
perfeito se ela não fosse lésbica e ele, gay.
Jéssica não era muito do tipo de socializar, tinha um pouco de preguiça
de gente. Sua exceção era Jairinho, que além de boa praça, morava num lugar
muito agradável durante o dia, um casarão tombado pelo Patrimônio Histórico da
cidade, que tinha fama de mal assombrado e parecia abandonado. Ficava nos
fundos de um terreno muito grande e arborizado, que de noite dava assobios por
causa do vento, que fazia curva ali. Jairinho morava sozinho, e na percepção de
Jéssica isso exigia uma boa dose de coragem (que precisaria beber em shots
contínuos, e se manter embriagada, caso fosse ela a morar no casarão).
Levava em sua mochila algumas doses de medicamentos vencidos, surrupiados
da dentista, que era a sua chefe. Se sentia meio transgressora, mas sabia que,
de tudo, roubar remédios que iriam para o lixo era o menor dos males. Por falta
de coragem, só assistiu Alex injetar o remédio em Jairinho, que teve uma reação
adversa e inesperada, e se contorceu, aparentemente de dor, instantes antes de
Alex enfiar do lado de sua testa uma chave de fenda, e martelar.
O fim
Alex e Jéssica tinham se preparado a semana inteira para aquele momento,
e não à toa foram até a casa de Jairinho naquela manhã num passo meio fúnebre,
numa marcha um pouco mais lenta. Tinham que dar cabo de uma missão secreta,
nobre e ilegal. Nem desconfiavam que o plano, elaborado por Jairinho alguns
dias antes, sairia completamente do esperado, forçando as duas a tomarem
decisões que transformariam quem são (quem eram!).
Jéssica viu a namorada abraçar o amigo, num gesto mais demorado que o
normal. Pareceu ser. Ou vai ver que ela é que estava emotiva, e depois suas
lembranças seriam afetadas pelo sentimentalismo, a fazendo ver coisas que nem
aconteceram de verdade. Como aquele abraço demorado – o último.
Jairinho não parecia mais a mesma pessoa de sempre. Estava magro,
abatido, com sulcos profundos no rosto outrora alegre e saudável. Parecia que
ou não dormia há mais de uma semana, ou não saía da cama há todo esse tempo. Sua
fisionomia deixava nítido o que ocorria naquele momento com seu corpo, com
algumas células se reproduzindo desenfreada e incorretamente, e outras, já
quase desistindo, exaustas e enfraquecidas, lutando contra a invasão de Troia.
Alex já tinha visto o padecimento por conta da agressão do tratamento, mas era
a primeira vez que via a ofensiva que o câncer, sozinho, provocava.
Se revoltou, por não ter contra quem se revoltar a não ser a própria
vida, e assumiu uma postura necessária para a eutanásia que ocorreria naquela
garagem empoeirada. Caberia a ela aplicar os medicamentos surrupiados do trabalho
de Jéssica. Eles deixariam Jairinho sedado o suficiente para intoxicá-lo – e
matá-lo. Uma morte digna de quem decide seu momento de morrer.
Esse foi, pelo menos, o argumento de Jairinho, e Alex entendeu que cabia
a ela ajudá-lo. Afinal, só ele a ajudaria numa coisa tão maluca quanto essa, se
fosse o inverso.
Aplicou a injeção e esperou. As batidas do coração ecoavam na ponta do
dedo que empurrava a bunda da seringa. Jairinho fez o sinal, e ela aplicou a
segunda. Após a terceira dose ele começou a se contorcer, disse que estava com
dor, que algo estava errado. Pediu para ela fazer algo, mas não havia mais nada
para injetar. Aí viu o amigo gritar, e junto do grito viu o desespero em seus
olhos. Olhou rapidamente para os lados e usou o que tinha à mão.
Quando Jairinho disse que não aguentava mais, enfiou em sua cabeça uma
chave de fenda, com a ajuda de um martelo.
Na semana seguinte, o jornal da cidade estampava o ocorrido em primeira
página. Trazia como manchete “Polícia investiga morte de morador” uma matéria
que dispendia mais espaço para contar a história do casarão do que o
assassinato, que a polícia ainda investigava, sem muitas pistas. A reportagem, sem
assinatura, informava ainda que um morador de rua conhecido como Marechal era o
principal suspeito, mas que ele tinha sido liberado porque a arma do crime,
algo pontiagudo, provavelmente uma chave de fenda, havia sumido.
Alex e Jéssica enrolaram a chave com o jornal, antes de guardá-la sob um piso solto da casa da mãe de Jéssica. Tinham como plano derreter a peça, à moda Breaking Bad, só que com soda cáustica. Mas isso já é outra história.
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