Clarisse (que pra tudo inventa história) (Conto)
Quarta-feira,
duas da tarde. O sol a pino no céu azul, algumas esparsas nuvens, bem
branquinhas, parecendo algodão, e uma brisa leve de outono que atiça as pontas
das folhas das árvores – que estão naquela mescla típica dos meses entre
estações (algumas já amarronzadas, presas aos galhos só pela fé que têm, e
outras temporãs, que antes da hora anunciam suas cores, bem vivas, bem rosas). É
aquele tipo de dia que na sombra faz até frio, mas que no sol tem que tirar o
casaco.
No
horizonte vê-se Clarisse, com o computador quente a tiracolo, guardado dentro
da bolsa usada de maneira transversal ao corpo. Seu olhar é vago, apesar de
seus olhos, como sempre, mexerem incansavelmente, focando tudo à sua volta, por
frações de tempo muito breves. Tão rápido que ela nem enxergava, exatamente, o
que via. Mas de alguma forma, registrava, e guardava os detalhes de cada
detalhe numa pastinha mental, que aparentemente, a olho nu, era pequena, mas
tinha o potencial de uma estante cheia de prateleiras, do chão até o teto. Ali
ela se servia, se fartava, quase se lambuzava quando escrevia.
Clarisse
tinha o dom da criatividade. Aperfeiçoou sua escrita só por isso. E era
incrível o poder que havia em colocar para fora invenções que simplesmente
brotavam dentro dela. Às vezes até sem querer. Como a vez em que foi dar uma
volta com seu cachorrinho, que se cansava fácil e passeava sempre no colo (e
notou que isso já era uma história, se ninguém a conhecesse, ou ao seu cão, já
meio idoso, famoso no parquinho e num grupo do Facebook).
E
não que ela buscasse por um embasamento, mas encontrou um, importante, ao ler praticamente
todos (são muitos) os livros do Gabriel García Márquez, numa época em que o autor
ainda estava vivo, e éramos ricas por termos a sorte de encontrá-lo
despretensiosamente em entrevistas de jornais aos domingos. Clarisse se
identificou com o gênio do realismo fantástico – categoria literária que ela
pouco conhecia como leitora, mas era pioneira na escrita (e ao estilo Gabo:
muita coisa nem estava escrita, propriamente falando. A menina escrevia em
notas mentais, em blocos enormes que não tinham fim, ou uma dimensão que coubesse
em palavras, nessas horas tão rasas para expressar a grandiosidade da sua
imaginação, terreno tão fértil para histórias ilógicas que cabiam no seu dia a
dia).
Era
um grande caldeirão, que ela ia adicionando ingredientes não tão absurdos como
os dos contos de fada, das bruxas, mas talvez absurdos por serem tão banais,
tão comuns. E Clarisse era desde a mão que misturava tudo ao livro de receitas,
e cada ingrediente tinha um pouco dela também (não tinha como não ser, era tudo
ela). Parte daquilo ela compartilhava, algumas coisas contava em voz alta para
quem quisesse ouvir (numa narrativa que dava vida a personagens como se fossem
pessoas de verdade). Mas muito do que saía dali só ela conhecia (viver é uma
coisa muito louca, muito subjetiva!). E Clarisse não sabia ser diferente, era
uma vida inteira sendo assim.
E
aí decidiu ser escritora.
Não
dessas que ela almejava ser (que ainda não existia, porque era uma ocupação que
só cabia à Clarisse e a mais ninguém), e nem do tipo que responde isso quando
lhe perguntavam sua profissão, o que ela fazia da vida – cuja resposta sempre
variava. A moça acreditava que somos pessoas diferentes conforme o dia avança,
de acordo com o dia da semana, do mês, a fase da lua, o clima, a estação. Ela
acordava uma e dormia outra. Saber disso, longe de ser um fardo, era uma
libertação. E aí combinava com ela mesma horários específicos para escrever
histórias específicas. Este conto conta duas de suas histórias. Ao vivo.
1.
O pirata metropolitano
Era
uma vez um mar bravo infestado de piratas que não sabiam remar. Ou nadar.
Sabiam ancorar e desancorar, se preciso, guerrear, mas ainda não dominavam o
manejo do leme, do vento, confundiam bombordo com estibordo e eram românticos
demais para mapearem o céu e aí avançavam pouco, além de onde todos já haviam
chegado. E tudo foi assim por anos, e ninguém sabia ser diferente porque
achavam que inovar os poria de alguma forma diante de algum risco, expostos a
perigos ainda mais temíveis que as sereias do mar avançado, ou aos peixes das
histórias que comiam gente como se tivessem dentinhos de humano crescido. Até a
chegada de Navegantes, que já nasceu com nome no plural.
Desde
menino o menino com nome de adulto queria saber o que havia lá. Além da
linha que seu olho o convencia que existia, no horizonte. Haveria mais água?
Terra? Histórias novas para desbravar, sabia que existiam, sentia, e Navegantes
nasceu para ser marujo, capitão, mas só poderia ser pirata, então pirata foi.
Dotado
de uma capacidade incrível de boiar, e de não sentir medo de tempestades em
alto-mar, Navegantes navegou por dias, e noites, e foram muitas madrugadas avançando,
mar adentro, longe das bordas. Minúsculo naquela vastidão de águas salgadas e
onduladas, solitário com seus pensamentos, anos a fio. Se fosse em outra época
ele tiraria proveito da experiência, viraria coach, palestrante, ficaria rico
no Youtube. E ele mirou nisso. Na era do conhecimento. Da comunicação fácil.
Achou que 2021 era futuro e zarpou.
As
histórias de pirata nunca contam as histórias das famílias dos piratas, dos que
ficam em terra, cientes de que aqueles que embarcam são seres do mundo,
cidadãos de suas jornadas. Navegantes não deixou saudades. As pessoas o amavam,
lembravam dele do aniversário, mas tem filho que nasce desgarrado, o que se pode
fazer? Trabalhamos o desapego desde épocas que não tínhamos o conceito da
coisa.
Dizem
que quando chegou aqui, Navegantes de imediato abandonou o tapa-olho que usava
só de charme, porque era de costume, parte do traje, e adotou a máscara usada
pelas pessoas de bom senso. Soube que há vários mundos, no mundo, inclusive no
sentido de que algumas pessoas enxergam por óticas distorcidas, por uma lente
torta que os deixa igualmente tortos, num mundo à parte, quase paralelo –
surreal.
Hoje
em dia ele é visto no semáforo, carrega um papelão escrito à mão onde se diz
pirata, que sente fome. As pessoas ajudam porque acham graça. Antes da pandemia
até paravam, tiravam foto (quase uma atração turística). Navegantes é acessível,
acha graça, afirma saber com quantos paus se faz uma jangada.
Um
dia alguém descobre ele.
Havia
uma gangue especializada em roubar joias preciosas desde a época que a palavra
tinha acento. Tinham feito meia dúzia de emboscadas bem sucedidas, porque eram
comedidos, e porque cada assalto rendia um bom tempo de luxos que só quem está
desacostumado a ter, tem. Não podiam dar na pinta, para não dar na cara, então
se esbaldavam nos iogurtes caros, nos Ifood todo dia, só bebiam água de
garrafinha importada. Uma vida mediana para sujeitos acostumados à adrenalina
do crime. Então decidiram por mais um.
Um
diferente, quase inédito, em bairro de classe média para baixo, num prédio de
uma avenida que quando chove muito, alaga, cidade inteira conhece – até quem é
de fora já ouviu falar. Mora lá uma Fulana que herdou umas bugigangas que, segundo
o seu Instagram, pertenceram à família real e o escambau. Coisa fina, de
primeira, que ela ostenta entre as fotos compartilhadas com qualquer um, com
quem quiser ver (e quem não quer ver, vê também. É impressionante as coisas que
as pessoas expõem sobre a própria vida na internet, de graça).
Oitavo
andar de um prédio de nove andares. Só esse começo já deixou geral eriçada:
como assim, nove, e não dez andares? Quem projeta uma coisa dessas? Uma entrada
para carros, uma para pedestres, porteiro só virtual. Ficar de tocaia foi
fácil, na esquina fica o estádio do Guarani, time da série J do Campeonato que
não passa na tevê. Vira e mexe tem ali uns tiozinho da prefeitura que
sazonalmente arrancam as flores mortas do canteiro e plantam outras (eles eram
mais frequentes que o caminhão-pipa que regava as pobrezinhas). Algum tipo de
lavagem de dinheiro, certeza, mas esse já é outro tipo de roubo. Um de cada vez,
vamos com calma.
Dia
do crime, tudo certo com o plano, a entrada seria suave, sem chamar atenção, coisa
que pretendiam resolver em dez minutos, se o elevador não enguiçasse na subida.
E teria sido, não fosse uma testemunha ocular, que morava próximo dali, em dias
secos: Navegantes, o morador de rua que avisou à polícia, que sempre lhe dava
coxinha.
Um
cerco policial foi montado, grades de contenção foram postas, todo um aparato
policial esquematizado para frustrar a tentativa dos ladrões, que se viram
acuados e tiveram que se render. Ao todo, 12 homens de touca foram detidos, e
aquela certamente seria mais uma história que aquele homem que lembrava um
pirata contaria, e ninguém ia acreditar ser verdade.
*
Ao
terminar de escrever, Clarisse voltou para a janela, de onde via, contra a luz
acesa do estádio, que anunciava um jogo, o giroflex de quatro carros da
polícia. Protegiam um ônibus, de um time da capital que ganhou de 1x0 do time
da casa (que perde até para o time dos bombeiros.). Acenou de longe para
Navegantes, que retribuiu com um sorriso.
Clique aqui para acessar o menu completo com todas as histórias.
Ajude esta escritora independente, clique aqui e faça uma doação!
Você não precisa se identificar, se não quiser! 💙