Prêmio da Virada (Conto)

 

Anualmente, Renata acompanhava na tevê e nos outdoors espalhados pela cidade aquelas tradicionais campanhas de fim de ano, que tentavam sempre tocar seu coração: “Doe uma roupa”. “Arrume seus armários, doe o que não usa”. “Quem ama, doa”. A impressão que se tinha é que, a cada ano, as campanhas estavam mais e mais apelativas; agora estavam até se valendo de gatinhos fofos e filhotes de cachorro, que pareciam pedir pela doação. Em vão. Renata até se animava, a princípio, chegava a se ver separando as roupas – e havia várias delas que não eram usadas há meses. Muitas foram usadas uma única vez (algumas, só no provador da loja).

Renata se via separando as pilhas conforme o tipo: blusinhas aqui, calças ali, espartilhos na outra ponta. Mas sua atuação se restringia sempre ao campo mental, somente. Na prática, ela nada fazia. E aí entrava no ano novo com suas coisas todas acumuladas, prestes a se aglomerarem a novas aquisições (muitas delas fadadas ao mesmo destino: o fundo do armário ou gavetas já abarrotadas de coisas inúteis).

Ela não era consumista, necessariamente. Mas extravasava muitas vezes nas comprinhas on-line. Tentava afagar seu coração chateado com produtos que não precisava – e isso incluía as roupas, que ela comprava de tamanhos diferentes aos seus, numa tentativa esquisita de iniciar uma nova dieta. Nesse esquema tinha comprado uma bicicleta ergométrica, roupas de academia e uma corda que contava pulos que ela nunca pulou. Isso sem falar nas panelas antiaderentes, nas capas para sofá e os eletrodomésticos que Renata nem sabia direito como usar.

E era assim que ela vinha até ali, até 2020, o ano em que tudo mudou. O ano do isolamento, do encontro de Renata com Renata. Aquele foi um período tão atípico que no primeiro mês da quarentena ela arrumou todos os armários da cozinha. Porque encontrou uma barata, é verdade, mas o ensejo a fez observar a grande quantidade de potes sem tampa, e de tampas sem potes (ou até panelas! Ela encontrou duas tampas de panela, órfãs). Não doou nada, isso é fato, mas toda caminhada se inicia com um passo, e este foi o início da jornada de Renata.

Não demorou muito para ela reorganizar seus itens de cozinha. E foi aí que fez sua primeira doação: uma pipoqueira elétrica. Renata não gostava de pipoca.

O desprendimento chegou a um nível que a mulher se viu se desfazendo das coisas. Enfiou na cabeça que “menos é mais” e se restringiu a cinco panelas, cinco pratos, cinco copos e cinco conjuntinhos de garfo, faca e colher (ela adorava o número cinco!). Nos últimos tempos não tinha recebido muitas visitas, então acreditou que a quantidade serviria (e sobraria, possivelmente). Em tempos de isolamento social, Renata pensou que quanto menos gente viesse à sua casa, melhor seria. Mas constatou isso um pouco preocupada – temia que ao final desse experimento ela ficasse com ojeriza de pessoas e suas interações, muitas vezes enfadonhas, meramente políticas, sociais. Contou nos dedos de uma só mão as pessoas que ela definitivamente não queria cortar os laços. Se todas viessem jantar em sua casa numa mesma noite os pratos dariam conta, sucesso.

Antes de dezembro ela chegou no seu quarto – e nos armários que ficavam no alto, que ela mal alcançava, e que cuspiam roupas diante da menor intenção de se abrir uma das portas. Já tinha passado pela sala, onde reduziu em 75% o número de móveis, mantendo só um sofá que talvez não acomodasse mais de três pessoas por vez. Doou o rack, a mesinha de centro e até a estante de livros (e os livros!). Instalou uma rede no canto, que ela já tinha, e se programou a ler ali, no kindle comprado no ano anterior, mas que ela não usava.

Renata tinha lido alguns textos que falavam de minimalismo, feng shui e até uma analogia que dizia que a casa precisa ter o espaço suficiente para um dragão passar. Passariam dois agora, certeza. Quase dava eco, e dava também uma impressão de leveza. Renata se sentia leve, passeava entre os móveis quase dançando!

Em uma das tardes de arrumação, se permitiu sentar no canto e chorar um pouco – de gratidão, talvez. Renata tinha entrado numa corrente de pensamentos sombrios, que começaram com a reflexão de que ela era a melhor pessoa para fazer aquela arrumação toda, nas suas próprias coisas. Imagine só morrer e alguém separar o que é seu, acumulado ao longo da vida, sem muito discernimento? Ou pior, julgando suas coisas. Renata se consolou por poder comprar tudo o que queria, sempre, mas se chateou porque se sentiu um pouco mesquinha. Tinha tanto, e tantos não tinham quase nada...

Ao retomar o trabalho se focou nas inúmeras bolsas, mochilas e pochetes que tinha. Sério, eram muitas. E sem muita pressa ela ia tirando os papéis de bala daquelas usadas mais vezes, as etiquetas daquelas nunca utilizadas, e por desencargo de consciência (afinal, era capricorniana e levava seu dinheiro muito a sério), enfiava a mão em todos os bolsos, até nos escondidos. Vai que numa dessas encontra dinheiro esquecido, né.

Mas Renata encontrou algo melhor. Mais valioso que uma nota amassada ou uma moeda expatriada. E passou dias tentando lembrar em que momento guardou, tão guardado, um canhoto da mega sena, com os números já escolhidos, dobrado como um envelope, com uma nota de R$ 10 dentro. Um jogo feito e o dinheiro da aposta. Que loucura!

Aparentando uma indecisão que não se via quando ela enchia carrinhos de compras virtuais, Renata ficou pensando há quanto tempo aquele jogo estava ali naquele bolso daquela bolsa. E mais: se questionou qual seria o dia certo para apostar, agora que tinha feito a descoberta. Haveria um dia certo?

Na semana entre o natal e o ano novo, se encheu de coragem e álcool gel, e como os cavaleiros prontos para a guerra Renata se armou com sua máscara de unicórnio e foi até a Lotérica mais perto – que ficava longe, mas ela foi de carro. Aquele jogo mudaria sua vida. Ela sabia! Renata sentia, quase!

Prêmio de não sei quantos milhões de dinheiros muda a vida de qualquer pessoa. Quantas compras cabem numa bolada dessas! Renata sorria por debaixo da máscara. A animação era tanta que embaçava até as lentes dos óculos, que precisaram ser limpos quando faltava uma pessoa para ser atendida. E foi então que ela viu. Uma cena que arrebataria seu coração, e mudaria todo o rumo da sua história: sentado na calçada havia um homem e um cachorro, aparentando idade avançada, que usava em volta do pescoço um lenço que Renata até já tinha tido igual. O sujeito parecia esfomeado, mas amorosamente alimentava o bichinho com o que parecia ser o resto de uma marmita de um dia. Aquilo a tocou de tal forma que Renata saiu da fila, quase hipnotizada, e entregou sem pensar o jogo, e o dinheiro, para o homem e seu cachorro. Eles certamente seriam mais felizes com o prêmio.

No fim, daquele jogo, nenhum número foi sorteado. O homem nem apostou, também (ele usou o dinheiro para comprar um chapéu para o seu cachorro). Mas Renata ganhou o prêmio: na virada, brindou com Fabrícia, que usava a outra taça que sobrou. As duas se conheceram na fila da Lotérica.


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