Home office (conto)


Naquele fatídico dia (sempre será, o dia de nossa morte, amém), exatamente às 4h20 da tarde, Cris teve um AVC. Uma sigla de três letras relacionada a uma série de problemas nos vasos sanguíneos do sistema nervoso central. Ela tinha lido um artigo, anos atrás, quando o acidente vascular cerebral deixou de ser chamado de derrame. Naquele dia um arrepio lhe subiu pela espinha, mas ela associou à janela, entreaberta, e à noite, que começava a cair.

Bem na hora que alguém buzinou da avenida de intenso movimento, que pulsava debaixo de sua janela, alguns andares acima do solo, Cris sentiu uma dor de cabeça intensa, e antes de elaborar qualquer pensamento percebeu que a vista do olho direito estava esquisita. Logo agora, que ela quase acabava a meta estipulada para aquele dia de trabalho!

Quando mocinha, Cris sonhava em ser cantora. Não era muio ambiociosa, não almejava estádios lotados e grandes multidões. Para ela, bastaria uma apresentação num shopping. Num barzinho. Tinha gostado da ideia quando viu uma cantora se apresentar numa churrascaria. Para a menina, inocente, aquele poderia ser o ápice de sua carreira. Viu que rolava até umas gorjetas (que ela interpretou como acréscimo ao cachê).

Foi quando começou a cantar no chuveiro. Fez ali sua primeira composição: uma cantiga triste, quase uma lamúria, que contava sobre a maldição de um menino que queria ser cantor, mas foi transformado num chuveiro. A canção entoava sobre a inspiração que muitos sentem, por isso, de cantar quando se banham. Cris aplaudia sempre.

Mas conforme foi crescendo, e as dificuldades da vida foram se apresentando, os sonhos foram sendo colocados cada vez mais de lado, ao ponto de estarem distantes o suficiente para ela nem pensar mais a respeito – ou, quando pensava, era até com certo desdém. Cris nem percebeu a transição, mas de repente virou aquelas pessoas que acreditam que o trabalho é tudo nessa vida; que a gente nasce é para pagar boleto e bater cartão, e felizes aqueles que têm rotinas estressantes. Passou a buscar isso, embora sem perceber, sem se dar conta realmente do que corria atrás.

Acabou trabalhando com processamento de dados, e fazia um monte de atividades no computador, em planilhas que se mexiam conforme ela avançava nos preenchimentos. Quase um organismo vivo, com suas células coloridas. Era um ofício que ela julgava ser tranquilo, não havia cobranças – se havia, partiam dela. Cris era muito exigente, e se cobrava muito, e estabelecia metas altas, que deixava em aberto; quando atingia, dobrava.

Para as empresas, profissionais assim são bem-vindos, ainda mais com o perfil de Cris, que não tinha tempo para mais nada, a não ser trabalhar. Trabalhava de manhã até de noite. Tinha dias que invadia a madrugada. Ou perdia o sono antes de o sol nascer, e começava a trabalhar quando todos ainda sonhavam.

Cris trabalhava em sistema de home office. Pedia comida por aplicativo, quando almoçava, ou jantava, e se alimentava sem nem prestar atenção. Comia na frente da tela. O teclado era manchado de molho. O mouse, era sujo de shoyu. E ela aceitava novas demandas de trabalho sem se preocupar com mais nada além disso. Não se preocupava nem com ela.

Cris nunca cantou. Nem no banho. No dia do seu AVC, tudo o que fez foi caminhar até o banheiro, parando em frente ao espelho. Tentou sorrir. Tinha lido que uma pessoa, quando tem AVC, não consegue sorrir. Caiu ali mesmo.

Outra pessoa assumiu seu trabalho na manhã seguinte.

 

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