Fim d'Era
Durante uma fase
da minha vida, que durou alguns anos (que enquanto eu vivia tinha a impressão
de se tratar de séculos, milênios), eu caminhei presa a pesos que me impus.
Falando assim soa como se eu tivesse sido negligente... e fui, de certa forma, depois
de ter sido acertada pela pedrada da depressão. É fácil me julgar, agora que já
levantei.
Mas enquanto
estava ali, amarrada, ancorada (ainda que em uma terra firme que tinha sempre a
audácia de escapar de debaixo dos meus pés, me dando a impressão de estar sempre
caindo, o tempo todo indo para baixo), eu não tive condições de fazer muito
além de existir. Se é que o fiz! Hoje quando observo a minha recente linha do
tempo esse período se assemelha a um borrão. Sei lá eu como cheguei aqui!
Ou melhor, sei!
E foi uma somatória de coisas, um aglomerado de novos pensamentos, novas atitudes,
avaliações de sentimentos antes inexistentes, de emoções, também. Passei a
olhar para mim. Percebi que a cura estava em mim. As ferramentas e auxílios que
recebi não teriam surtido efeito se eu não tivesse aberto passagem, permitido. Me
lembro bem do dia que me levantei e me pus a caminhar. Era uma sexta-feira de
sol, final de 2016.
Em 2017, como
parte desse processo de autoconhecimento e autocura, baixei um aplicativo de humor
no meu celular. Se chama Daylio, foi o primeiro que vi na Playstore. De lá até
aqui foram mais de mil dias, consecutivos, preenchendo com figurinhas como foi
meu dia, na versão grátis do app. Mil dias procurando bons motivos para colocar
no aplicativo que meu humor tinha sido “ótimo”, porque naquele dia eu “trabalhei”
ou “descansei”, dei “rolê com a Nani” ou “assisti Netflix”. Uma das atividades
era “comi”, que foi raro durante boa parte desta quarentena.
O aplicativo
gerava gráficos, mensais, semestrais, que eu sinceramente nem olhava. O interessante
para mim era essa reflexão diária – despertada sempre após às 22h, quando
chegava a notificação. Porque obviamente não tive mil dias “ótimos”. Imagine
que estamos falando de mais de três anos. Na vida de uma pessoa até então
depressiva. Mas eu sempre buscava um motivo para classificar meu dia
como um ótimo dia.
A vida me
ensinou, quase que na porrada, que as coisas simples são o que realmente importam.
Não desmerecendo os grandes feitos, mas eu sei que uma doença pode impedir
alguém de ir até a padaria comprar pão, por exemplo. Ou tomar banho sozinha. Ou
mesmo uma melancolia pode ser tão dolorosa que é muito bom conseguir sair da
cama de manhã – e é importante se sentir bem também por valorizar isso.
Eu valorizava essas
pequenas grandes conquistas. E, hoje sei, que tudo foi se suavizando conforme
fui avançando, embora na velocidade de uma areia preguiçosa numa ampulheta com defeito.
E como numa
longa jornada, numa caminhada que não se cessa, eu permaneci em movimento, me
afastando cada vez mais e mais daquela que fui, embora caminhe no chão
escolhido por ela. E nossa conexão, em partes, se estabeleceu via Daylio – o aplicativo
foi uma ponte entre nós, acompanhou o progresso desta mulher que aqui se
manifesta, nos seus altos e baixos cotidianos, brindados no seu copo meio cheio.
Esta semana
vivenciei um marco, que quero deixar registrado, porque certamente ficará
marcado: meu celular, em fim de carreira, precisou ser formatado. Era ou isso
ou eu jogava ele da janela, pelo puro prazer e deleite de vê-lo se espatifar lá
no asfalto, do alto do quarto andar. Formatei, e perdi o registro do aplicativo
de humor. É o fim de uma era, porque já consigo caminhar sem essa bengala.
Hoje meu registro
seria “radiante”. Eu “comi”, dei “rolê com a Nani”, “trabalhei”, e “caribu”.
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