Valentina (conto)

Muita gente reclama que se mudar de casa é uma trabalheira sem fim – primeiro, você precisa desmontar e limpar uma casa, e na sequência limpar e montar outra casa. E é cansativo mesmo para os mais organizados, que colocam etiquetas nas caixas identificando, por exemplo, onde estão as panelas, onde se encontram as toalhas. E na hora do “vamo vê”, no fim daquele dia cansativo (que envolve caminhão, preocupação, e ansiedade com a novidade), tudo o que se quer é deitar na cama do quarto novo.

Mas isso é só no fim do dia. E aquele estava apenas começando.

Valentina estava animada. Levantou cedo e escovou os dentes consciente de que aquela era a última vez que fazia aquilo ali – naquela pia meio manchada do banheiro de azulejo azul. Foram muitas escovadas – e muitas escovas também. Tinha boas memórias naquela parte da casa! Exceto quando bateu a cabeça na porta do armário que tinha o espelho, num dia que esqueceu ela aberta. Ainda tinha a cicatriz no meio da testa, ela conferiu, fechando a porta de um armarinho agora vazio. Ao sair deu um sorriso que era uma mescla de gratidão e despedida. Fez o mesmo gesto nas outras duas vezes que precisou passar por ali para fazer xixi.

Tomou café na única caneca que não tinha sido embalada, encostada onde agora era apenas um espaço vazio, mas que durante muito tempo aconchegou uma mesinha branca que ficava encostada na parede, com três cadeiras em volta – a quarta virou cabide, no canto do quarto, que agora também apresentava aquela solidão típica de mudança. É um sentimento que invade quem se muda; há uma alegria pelos novos ares, mas fica também aquele dó de se desapegar do aconchego de uma casa que serviu como lar. Há lembranças impregnadas nas paredes que não cabem simplesmente em porta-retratos; não dá para transportar. Por sorte, é um bom exercício de desapego porque a mudança geralmente tem o intuito de ir para um lugar melhor.

Era o que Valentina se dizia naquele instante, conferindo pela última vez (última! Já tinha feito a checagem antes) todos os cômodos da casa vazia que, agora, exibia de maneira mais nítida os sulcos provocados pelos pés do sofá, no canto da sala. Ao olhar para a marca no chão, Valentina torceu para que a imobiliária não reclamasse daquilo. Fechou a porta e ao trancar, suspirou.

Assim que se virou assumiu uma postura completamente diferente. Agora exibia nos olhos, que brilhavam, a expectativa de se ir para uma casa nova. Um ambiente “novinho” em folha (mesmo que seja de uma construção antiga, é nova para quem chega!), pronto para ter impresso nele novas lembranças, novas memórias. E tudo começa com a “preocupação” (que nem preocupa!) de definir onde cada móvel vai ficar, os objetos de decoração, as coisas penduradas nas paredes. Valentina tinha gostado daquele lugar desde a primeira vez que bateu os olhos na primeira foto daquele anúncio na internet. E a vista era ótima, compensava até o fato de ser um pouco menor do que o lar anterior. Tinha certeza de que seria incrível.

Ela tinha preguiça só de pensar que a mudança causaria nela a possibilidade de esbarrar eventualmente com os novos vizinhos – que sempre querem ser bem gentis quando alguém novo chega na área. Ou era o que ela acreditava, baseada nos filmes norte-americanos que adorava assistir.

Carregou algumas caixas para agilizar todo o processo, e ficou feliz ao se trancar dentro da nova casa, depois que o moço do caminhão foi embora. Estava tudo uma bagunça, várias caixas aqui e ali, mas ao menos já estava com tudo lá dentro. E pelo menos estava sozinha (ela tinha um pouco de preguiça de interações sociais em geral. Achava as pessoas todas muito chatas e tediosas). Agora era só ajeitar, e podia fazer isso com calma, tranquilamente, até mesmo ao longo da semana (mas Valentina ainda não queria admitir isso, era muito cedo, tinha acabado de chegar!).

Mirando na recompensa, foi direto para o quarto. Quis montar primeiro a cama. Escolheu a parede que não deixava nem os pés virados para a porta e nem a cabeceira encostada na parede que fazia divisa com o banheiro. Tinha visto que, segundo o Feng Shui, isso drena energia e ela queria as dela todas ali, muito obrigada. Forrou com um lençol que era antigo, mas que merecia ser o primeiro a estrear no quarto novo. Ele tinha algumas formas geométricas que sempre que ela olhava um pouco mais fixo ficava enjoada, então nunca podia olhar diretamente para o colchão quando ele estava em uso, mas fora isso era um ótimo lençol, bem macio, 100% algodão (os outros eram todos com poliéster no meio, que cagava todo o rolê), e ela tinha feito só um único furinho, uma vez que estava fumando distraída e a brasinha caiu na cama (acontecia, às vezes). Cobriu rapidinho com uma colcha de flores, antes que ficasse indisposta (ou se rendesse aos tecidos mais ordinários). Apoiou em cima os travesseiros – eram cinco. Gostava desse número.

Acendeu o primeiro incenso: “abre caminho”. Colocou atrás da porta, estrategicamente. Acendeu o segundo: “chuva de bênçãos”. Apoiou no cantinho, bem no cantinho mesmo, num buraquinho que encontrou no chão de taco. Acendeu um terceiro: “sol”, e colocou no incensário de madeira que virava uma caixinha, e fazia a fumaça sair bem devagarzinho (era sempre o último a apagar). Jogou o isqueiro, que era daqueles quadrados, tipo zippo, bem no meio da cama. Viu o movimento, leve, do objeto se amaciando contra os florais da colcha.

Se deu por satisfeita. Não podia mesmo se demorar muito ali, havia uma casa inteira para arrumar e ela já estava com fome. Decidiu por uma comida de aplicativo – com talheres, por favor. Nem sabia mais onde estava a caixa com os utensílios de cozinha. Ao terminar sua primeira refeição (um burrito), sorriu ao estabelecer onde ficaria a lata de lixo. Sim, uma coisa de cada vez.

Arrumou parcamente a sala, encostou os dois sofás no canto depois de algumas tentativas frustradas de arrumação. Talvez não tivesse sido também uma boa ideia furar e pendurar a tevê, assim, logo de cara. Torceu para que sua primeira intuição se mostrasse uma decisão acertada no futuro, que ali não batesse o sol diretamente, por exemplo. Será que batia? Ela não sabia.

Tomou banho gelado porque não se programou direito (era um pouco novata nessa história de mudança de casa), e quando viu já estava escuro e ela não conseguiu ligar os fios do chuveiro se valendo da luz do dia. Aquilo ela sabia fazer bem porque Valentina enfrentou um inferno astral uns anos atrás e conseguiu queimar três chuveiros em poucos dias, então aprendeu até a trocar resistência, também.

À noite, já bem tarde, nas horas avançadas, observou, já bastante cansada, a iluminação no seu novo quarto, com a cama ali naquela parede, e constatou que ficava muito bom. Puxou a colcha e se preparou para pegar o isqueiro, jogado ali mais cedo. Mas, estranho, ele não veio antes que a estampa do lençol de baixo se exibisse, berrante. Ela chacoalhou o pano. Nada.

Se sentiu um pouco idiota (talvez maluca), mas se abaixou para ver se, sei lá, por acaso, eventualmente, quem sabe, o isqueiro estivesse ali, embaixo da cama. Precisou fechar um pouco os olhos, ajustando a vista (já tinha tirado os óculos), mas viu ali o objeto metálico, e ele parecia até reproduzir o reflexo de um brilho inexistente. Estava exatamente embaixo do ponto onde tinha sido arremessado (só que alguns centímetros de colchão abaixo).

Valentina cruzou um dos braços embaixo do peito, apoiando o outro cotovelo sobre a mão, que estava fechada, com dois dedos sobre a boca. Pensativa, se perguntava como caralhos aquilo era possível.

Seria sua cama alguma passagem mágica para uma realidade paralela? A casa nova seria encantada? A parede, de alguma forma, despertou algum encanto? Ela estava mesmo doida, e na verdade atirou o isqueiro direto no chão? Muitas perguntas que permaneceram sem resposta.

Naquela noite, ao se deitar, naqueles breves instantes que antecedem nossa fantástica viagem ao país das maravilhas, Valentina nem percebeu seu corpo afundando.


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