Tipo déjà vu (conto)


Tudo começou num dia normal, comum como qualquer outro. É sempre assim, a gente sempre acorda como acorda todas as manhãs, mesmo naquelas mais deterministas e fatídicas, que simplesmente mudam todo o rumo de uma vida. Sabemos que existem esses dias. E eles são precedidos por essas manhãs mergulhadas em normalidade com a mesma tranquilidade do pão enfiado dentro da caneca de leite quente, no desjejum. Aí ações muitas vezes comuns de um cotidiano qualquer ficam marcadas porque foi “naquele dia”. Deixam de ser comuns, na verdade, as pessoas tomam ciência, comentam a respeito – até escrevem!

Mas só depois. E aí as histórias são rearranjadas cronologicamente para que o público acompanhe sem muitas dificuldades, monta-se uma linha do tempo salpicada de informações que temperam dada história. E quem tem acesso àquilo faz lá o seu julgamento, sob a lógica de sua própria vida, do alto do seu umbigo, e tudo isso é misturado a um mesmo caldeirão, servido à vítima – ou seria protagonista? Personagem principal, quem sabe?

Aqui ela se chama Cecília. Mas poderia ser Catarina, Elora ou até mesmo Alison (é nome de menina, nos EUA). Será contado aqui um dia de sua vida (“aquele dia”), recorrendo eventualmente ao passado, mas somente para fins de contextualização, para dar mais sentido à narrativa. Vale dizer que tudo o que será dito a respeito de Cecília é só porque é realmente importante para esse conto.  

[O resto são apenas as impressões desta narradora, que longe de ser testemunha ocular de tudo (só de uns 98,7%), sente alguns trechos de frases às vezes pulando, pulsando, pedindo para serem acarinhados, e sussurrando suplicam pelo seu toque, pelas lambidas de seus dedos, que deslizam, em regozijo, no teclado de um computador sujo e remendado. Há quem chame isso de mágica. Mas é apenas caribu, uma contadora de histórias].

Naquele dia na vida de Cecília, corriqueiro, ordinária, até, ela não parecia pressentir que seria o alvo de uma história como essa, que estaria sob estes holofotes, recebendo a sua audiência num dia como hoje. Nem imaginava que milhares de olhos a observariam se arrastar sonolenta até o banheiro e abrir com a mão esquerda a torneira do chuveiro.

De onde estamos, nesta posição confortável de leitores, de apreciadores de bons causos, percebemos que antes de sair da cama tudo já parece traçado, e a pessoa só vai seguindo os tracejados invisíveis, como mulas de carga – ou até pior. Em muitos casos nem preservam sua própria vida, rumam cegos para o precipício de suas quedas. Caem muitas vezes dentro de si mesmos. Atordoados, se perdem em labirintos, confusos, dentro de suas mentes (que jamais caberiam numa caixa encefálica) e mesmo quem recebeu Prêmio Nobel fica batendo a cabeça, como se não tivesse nada muito além do que a inteligência de um ratinho de laboratório.

Mas essas coisas todas a gente só percebe depois (quando percebe, né. Muitos se perdem para sempre). Enquanto as ações se desenrolam ficam todos meio alheios, quase abobados – do nosso ponto de vista, é claro. As pessoas na verdade só estão seguindo com o rumo de suas vidas, como se tudo estivesse normal, como se aquele fosse só mais um dia.

Cecília naquele dia acordou no horário de sempre, por volta das 7h, 7h30. Abriu um dos olhos só para constatar que já tinha amanhecido. Às vezes acontecia de a sua mente lhe pregar alguma peça, bugava de algum jeito, e aí já tinha ocorrido de ela levantar antes de os galos cantarem. Quando percebeu era 3h48 da manhã e ela lá, em pé no meio da cozinha querendo esquentar a água do café (os gatos nem entenderam). Por sorte ela já sabia reconhecer pelas sombras no seu quarto (ou a sua ausência) se já era hora de levantar, então um simples abrir de olhos lhe poupava de qualquer constrangimento – ainda que somente com ela e entre ela.

E Cecília não enrolava, achava que não tinha tempo a perder, ficando na cama além do necessário. Considerava um pouco insensato permanecer na horizontal mesmo depois de despertar, não estando doente, não sendo acamada. Nas (poucas) vezes que se forçou a isso ficou irritada, o corpo começou a doer, sentiu um incômodo, aí que quis sair da cama mesmo. Ela tinha uma urgência, era meio acelerada. Não como um acelerador de partículas (se bem que acabava que a mulher gerava ali à sua volta algum tipo de energia, ainda que de qualidade suspeita e/ou duvidosa!).

Naquela manhã particularmente ela estava agitada, teve uma noite igualmente excitada, tinha sonhos sempre malucos que se desvaneciam assim que acordava (às vezes antes de despertar, propriamente dito). Cecília era a mina das teorias. Ela tinha várias teorias! Uma mais maluca que a outra! Uma delas dizia que os sonhos desapareciam quando se encostava a mão na cabeça após acordar. Mas mesmo com as mãos contidas, ela mantinha as duas bem seguras, abaixo da cintura, não mexia nem no cabelo que acordava todo rebelde, dificilmente se lembrava do que tinha sonhado. O cansaço no corpo, entretanto, traduzia alguma coisa do que tinha experimentado – do que quer que fosse. Ela tinha passado as últimas horas dormindo, em teoria.

Na noite anterior tinha ficado pensando em Einstein. Tinha visto um meme com ele, que estava bravo por estarem usando a sua imagem ilustrada com frases motivacionais. Aquilo desencadeou uma série de pensamentos, típicos de Cecília, que davam as mãos uns para os outros e faziam uma ciranda numa roda muito doida que a deixava quase maluca. De verdade! Cecília tinha medo do potencial dos seus pensamentos, às vezes eles a prendiam como amarras e pensar nisso tudo sempre a deixava bastante nervosa. Morria de medo de terminar assim, amarrada numa camisa de força, trancada numa sala acolchoada. Fazia de tudo para afastar esses pensamentos, e aí adquiriu um tique: batia palma três vezes.

Tinha noites que ela parecia uma espanhola, tocando castanholas imaginárias. Clap, clap, clap.

Einstein dizia que a imaginação é mais importante que o conhecimento porque, ao contrário deste, limitado, “a imaginação abraça o mundo inteiro”. Cecília tinha medo desses abraços. Em especial aqueles que dava em si mesma, que lhe causavam até insônia e secura na boca. “Abraços de urso”, mas estilo Black Mirror.

Tinha medo de perguntar às pessoas se todas eram assim, se pensavam igual. Ela achava que não. Jurava, secretamente, que pensava diferente de todo o mundo. Mas longe de se sentir especial de alguma forma, Cecília tinha medo disso. O Google apontava uma série de transtornos mentais quando ela colocava algumas de suas características na barra de pesquisa. Isso é muito grave!

E ela brisava nos paradoxos todos que eram gerados, sem querer. Que de alguma forma ela fugiria tanto de algo que a sua fuga causaria justamente o desfecho que ela tanto fugia. Ficaria maluca tentando se manter sã. Clap, clap, clap.

Cecília tinha uma coisa com déjà vu. Começava que ela nem sabia pronunciar. Mas o problema mesmo era com aquela sensação que aquilo despertava nela. E tinha muitos, quase diariamente. Pesquisando na internet sobre esses “repentes de lucidez à frente do tempo” Cecília chegou a uma psicopatologia chamada paramnésia (tem relação com déjà vu, pesquisa lá!). Quem sofre de paramnésia lembra das palavras, mas não necessariamente do seu significado. Meu Deus, que doença horrível!

Nesse dia Cecília até teve febre. Ficou doidinha! Se sentiu igual àquela menina que relata que uma vez foi subir no ônibus, esqueceu como subia, e subiu de joelhos – só que com palavras. Suou frio por uma tarde inteira, e era inverno, os termômetros tudo marcando dez graus.

Uma vez ela estava numa praça, já era noite, estava frio, e ela teve um déjà vu de que achava dinheiro no chão, ali, no meio das folhas (era final de outono). Ficou horas andando para lá e para cá, em círculos, que nem louca. Voltou para casa mais pobre, porque foi assaltada na esquina de cima.

Jurou nunca mais fazer nada do tipo, mas por causa de déjà vu já tinha até batido boca na rua. Na sua cabeça a pessoa fez uma careta ao final da informação solicitada, e Cecília não era de levar desaforo de graça, intimou a pessoa (que era uma senhorinha, dessas que passeiam com cachorrinhos de franja e caminham super lentas). Saiu de louca na história. Clap, clap, clap.

Naquele dia (“o dia”, deste conto) Cecília teve tipo um déjà vu, quando foi colocar a caneca do café dentro da pia, alinhada com a goteira da torneira, que nunca cessava (mesmo quando faltava água no prédio). Ela pressentiu de alguma forma que estava sendo filmada, tipo num show de Truman-Cecílico da vida moderna. Na sua mente todos os cenários estavam montados, e aí rodou a cozinha com os olhos aflitos, procurado câmeras escondidas até dentro do açucareiro. Ficou histérica (e nem tinha útero, que ironia!), começou a gritar que nem maluca, mesmo, revirou a casa toda, quebrou tudo. Queria ver os técnicos de som, os figurantes atrás das cortinas (que na real só escondiam as grades da janela).

Foi tenso, Cecília nem parecia Cecília. Geral batendo palma para ver se ela voltava, nada. Não parecia nem ver ninguém ali, ou ouvir alguma coisa.

Ao todo o surto durou algumas horas, os vizinhos chamaram polícia, bombeiro, SAMU. Até uma equipe de jornalismo sensacionalista apareceu por lá, bateu sete pontos de audiência, uma boa média para o horário (o repórter até se surpreendeu, estava achando a história muito fraca). Na tarja da matéria escreveram: “Tipo déjà vu”.

Cecília agora está mais tranquilinha, blindada de sua própria mente. Os remédios a doparam tanto que ela nem sente a maciez da sala acolchoada onde foi enfiada. Está sentada no cantinho, com os braços contidos, amarrados nas longas mangas daquela peça de contenção. Conversa como se houvesse alguém ali. Ao final, se despede: “até mais, caribu”. Clap, clap, clap.


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