Te amo!
Nós somos feitas de muitas coisas. Nascemos sempre como páginas em branco, que vão sendo preenchidas e coloridas conforme as cores da vida de cada uma, com pinceladas ora incertas, ora precisas. Somos resultado do que vivemos, do meio em que estamos inseridas, da educação que recebemos. Nossas histórias são compostas pelas experiências vividas, pela somatória dos nossos sonhos, pelos nossos gostos, desejos e vontades, e até pelos traumas enfrentados, que nos marcam também. Cada acontecimento, cada situação se ajunta às demais, como numa grande colcha de retalhos pessoal, que está sempre em construção, em eterna expansão, nos dando a aparência de belas obras de arte viva. Belezas únicas, que longe de ficarem trancafiadas em museus, desfilam pelas ruas!
Há quem fale que
conforme o tempo passa, enquanto a vida avança, a gente vai ficando “calejada”,
mas eu prefiro pensar na palavra “condecorada”. Tem umas coisas que acontecem no
decorrer dos dias que deveríamos mesmo ganhar medalhas e premiações, às vezes
só por ter paciência de enfrentar, de aturar. São os chamados “testes”, chatos
pacarai.
E a engenharia
da coisa é tão perfeita, é tão divina, que até isso é personalizado, é
subjetivo, é pessoal. A gente passa pelas coisinhas que tem que passar mesmo,
não tem jeito, elas se apresentam, nos obrigam a vivê-las, a enfrentá-las. E se
repetem enquanto a gente é repetente naquilo, enquanto não aprende de verdade.
E esses testes vão se tornando mais complexos conforme a gente avança (aluna de
graduação não fica fazendo continha de 2+2, concorda?). Em cada dia, um leque
de possibilidades – de falharmos, mas principalmente de acertarmos!
A meta é clara:
a gente vem para evoluir e praticar a lei do amor. Mas tem que fazer isso
enquanto leva tiro, porrada e bomba.
Não bastasse
isso, que já é muita coisa, a gente nasceu mulher. Não é fácil ser mulher numa
sociedade machista, que já foi pior, sabemos, mas que nem por isso é perfeita
hoje. Ainda somos regidas por homens que acham que sabem o que queremos, quem
somos. Não é raro a gente ver, por exemplo, palestras sobre o sagrado feminino
proferidas por homens, ou livros que abordam a divindade da mulher, escritos
também por homens! Os cara acha que sabem tanto, que sabem até sobre a gente. Tolinhos!
Ser mulher é
revolucionário, e ser mulher gostando de mulher, que é o nosso caso aqui, é
quase um ato político. Não dá para ser diferente. A gente está batendo de
frente com essas determinações e convenções falocráticas (que mantêm o pênis
como centro do mundo), numa sociedade estruturada no sexismo e alicerçada na
misoginia. Onde já se viu, uma mulher querer ir contra isso, em rigor desde quase
sempre? Então são pequenas lutas, diárias, que nós enfrentamos pelo simples
fato de existirmos – e muitas dessas batalhas são travadas dentro de casa, onde
o preconceito se inicia, quase sempre.
Muitas de nós têm
histórias marcantes de quando se assumiram, de quando “saíram do armário” para
os seus pais, para sua família. Eu sou um caso desses. Não foi fácil me assumir
porque eu nem sabia direito o que eu era, para poder explicar para mim mesma, que
dirá explicar para as outras pessoas. E também porque meus pais reagiram
pessimamente à notícia. Eu tinha 18 anos na época.
Nunca tentei
lutar contra a minha natureza: sou o que sou, essas são as minhas cores, meu
quadro é isso aí. Mas confesso que em muitas ocasiões eu não quis ser lésbica,
porque isso me pesou sobre os ombros por diversas vezes, e de maneira injusta
em quase todas. Aquelas coisas tipo “respeito, mas não aceito”, sabe? “Tudo bem
ser, mas não precisa falar”. “Aposto que se um homem te comesse direito você
seria hétero”. Coisas assim.
É cansativo, na
prática. E eu sempre fui encanada com esse mundo cão, nem tanto por mim, mas em
especial pela minha filha. Lembro que quando era mais nova eu pensava que não
queria ter filhos porque soava muito absurdo querer trazer uma criança para uma
sociedade maluca como a nossa. Como eu explicaria as coisas todas para uma
criança? Mas aí a vida, infinitamente mais criativa que eu, me deu um bebê para
amar e cuidar. Hoje ela tem 17 anos.
Ontem foi o dia
dos filhos, e também o Dia da Visibilidade Bissexual. Era umas dez da noite
quando a minha filha se assumiu bi. Ela nos surpreendeu (a mim e à outra mãe) ao
criar um grupo no WhatsApp chamado “Armário”, adicionou nós duas, escreveu
“to saindo mães”, e saiu do grupo. Tudo planejado e arquitetado previamente.
Morri de orgulho!
Minha vontade, em
um primeiro instante, foi falar tanta coisa! Dar tantos alertas, tantos
conselhos, preveni-la de tantas formas, de tantos jeitos. Quis dizer a ela que
estava feliz, que estava preocupada, que estava orgulhosa, que estava aflita.
Quis pedir prudência e cautela, mas também falar que o Vale despejava naquele
momento lágrimas coloridas de alegria.
Me contive. Falei
que a amava, que para mim o que importa é que ela seja sempre feliz, e pedi
desculpas caso um dia eu tenha de alguma forma a desestimulado, nessas minhas
críticas ácidas, constantes. Eu disse algumas vezes que desejava que ela fosse
hétero, e não me orgulho disso. Por sorte, ela é mais evoluída que eu.
Agradeceu por termos mostrado a ela que o amor pode ter várias formas.
No final da
noite enfiei ela de volta no grupo, que agora se chama “Fora do armário”, e
virou nosso grupo de família.
Dedicada à Gabi!
(24/09/2020)
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