Procrastinação
A palavra soa
meio rude: “procrastinar”. A língua bate no céu da boca, se enrosca nos dentes,
parece até alemão. Parece também aqueles xingamentos quando a gente está
zangada. “Sua procrastinada!”; “vou te mandar para a procrastinação”. Mas longe
de algo áspero, enrolar para fazer as coisas na verdade é bem macio. É até quentinho.
Meu passatempo preferido, confesso. Fico postergando tudo naquele esquema,
conhecido: meta aberta! Quando alcança, dobra.
Eu gosto de gastar
a vida olhando lá para fora da janela. De onde passo o dia (quase é possível
dizer “de onde passo a vida”, ultimamente, porque já é meio ano nessa lida),
montada na minha cama, eu vejo algumas árvores. Muitas árvores, na verdade, e daqui
vejo apenas elas e o céu. Rotina de pandemia é ver o dia/vida passando nesse
enquadramento. Fica claro, azul, rosa, ou claro de novo, escuro, aí fica rosa
ou claro mais uma vez, e recomeça, tudo de novo. Choveu umas três vezes, nesses
quase sete meses. Vi duas estrelas cadentes e um etê.
Fora isso, é
isso aí.
Gosto bastante
quando dou a sorte de, nesse quadradinho, ver os passarinhos só na brisa do
vento, sem bater asa, de boinha, para cá e para lá, só sobem um pouco e descem,
e aí sobem de novo, descem mais uma vez. Nossa, fico horas nisso, sem
brincadeira. Minha mente fica planando junto com aquelas asas abertas. Tem
vezes que me imagino voando também, alheia às minhas ansiedades todas, me
preocupando só em virar no ângulo certo da corrente de ar e existir – porque acho
que é só isso que os pássaros fazem nesse momento. Existem e estão ali, no
quadrado da minha janela, e ganham a minha audiência, integralmente, enquanto
fazem isso. E quando não fazem também ganham porque eu observo até os que batem
asas, como fazem os passarinhos normais. Esses duram alguns segundos
atravessando uma ponta a outra da janela. Parecem insetinhos, às vezes, lá no
alto, rapidinhos, como se estivessem ligados numa bateria extra. Que é corrente
de ar, certeza!, mas para mim eles estão como naquelas esteiras do metrô
Consolação, e aí já estão também com gravatas e pastinhas de executivo cheias de
papéis que só eles entendem, preocupados porque não têm dedos para segurar o
bilhete único. Apressados sempre, não importa a hora. Devem ter compromissos
mil, para a natureza o isolamento impactou pouco, quase nada.
Tem dias, os
mais brilhantes, ou os mais sortudos, como preferir, que coincide de os meus olhos
deslizarem para a janela bem no momento que vejo aqueles pássaros majestosos
(que na hora nem penso que são devoradores de outros passarinhos, porque sempre
me emociono): os tucanos. Meu coração sempre acelera quando vejo um, desde a
primeira vez que vi, lá no Mato Grosso (que eu até chorei, porque é muito lindo
ver um bicho desse voando no céu! O bico parece que é de mentira, pintado à mão!).
E o merecimento é uma coisa tão real que tem vezes que mesmo distraída, quando
não estou olhando para a janela, sou atraída lá para fora: tem tucano que
parece que me chama, e canta enquanto desfila. E eu sempre falo “ó um tucano!”.
Mas os
passarinhos são bônus no meu cotidiano covídico pandêmico desse 2020 que chegou
para chacoalhar mesmo todas as estruturas, nos tirando de muitas zonas de conforto,
ainda que o pijama seja a roupa característica desse período insano e
turbulento. Geralmente eu procrastino enquanto observo as árvores, apenas. Nem
precisa de passarinho. Elas são como um quadro, só que vivo. Tem um pinheiro
que é o mais alto (as outras árvores batem, sei lá, quase no peito dele) e ele
balança bem – os galhinhos e o tronco, que parece bastante maleável daqui, mas
que nem se compara à árvore magricela que tem na frente dele, que enverga bem,
principalmente com os ventos mais fortes – mais ou menos como balança, na minha
cabeça, o prédio onde moro. Venta demais aqui, eu fico passada, não sei como
não caí ainda, até hoje. As janelas estremecem tanto que parecem agitadas por
mãos raivosas em certos dias, sem brincadeira. Dormir aqui nas primeiras noites
foi terrível, me senti intrusa na casa de alguém que nitidamente estava
bastante zangado por estar em posse das chaves (são duas). Coloquei um
mensageiro do vento perto da janela da sala que tem que ser contido, tem dia
que fecho o vidro (ele é animado demais, vizinha daqui a pouco até reclama); recebe
muitas mensagens em forma de vento, trabalha mais que os aparelhos de fax dos
anos 90.
Imagine uma
ventania constante, observada do alto do quatro andar de um prédio, atingindo
as copas (e as cinturinhas) de árvores agrupadas como jovens amigos que se juntavam
antigamente para uma selfie (será que fotos assim já são relíquias?). Você fica
um dia inteiro só olhando para isso, se duvidar. Eu fico!
Do lado do
pinheiro grandão tem uma árvore, que para mim é a mais especial porque ela
simula bem o decorrer de um ano inteiro. O seu ápice é por volta de dezembro, quando
ela fica inteira rosa, toda florida, chega a brilhar no sol, se destaca com o
azul do céu de pano de fundo, e aí ela vai perdendo as cores no avanço das
estações, conforme se apresentam os meses, e todas as flores caem, as folhas
ficam marrom depois de um tempo, parece até que ela está sem vida, mas sempre ressurge
como uma fênix – e, a cada ano, mais linda! Radiante!
E ela combina
com as amigas dela, e são vários tons, e várias folhagens, e cada uma, única
que é, balança ao seu gosto, como numa dança que é individual, mas também
coletiva, num flash mob da natureza (divino!), que, acredito, eu seja a
única espectadora. Pelo menos sou a única que aplaude!
Agora chegamos
naquela época do ano que esse quadro em constante movimento ganha som, porque
as cigarras se animam logo cedo, perto das dez, 11h da manhã elas já estão
cantando, e aí é que não faço mesmo mais nada da minha vida, fico só brisando
com essa vida toda lá fora e eu aqui num camarote esquisito, tentando repassar
para as palavras as emoções características de uma procrastinação típica de
quarentena. Meu Deus!
Eu tinha mil
coisas para fazer. Vários textos para escrever. Mas escrevi sobre procrastinar
e agora a lua, quase cheia, apareceu por aqui. Começou a programação noturna!
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