Olívia (conto)

Parte 1

Olívia era uma pessoa normal.

Ora, como assim, “normal”?

Ela era daquele tipo que, de longe, nem parece ter o desequilíbrio tão típico dos seres humanos. Somos todos um pouco fodidos da cabeça... Mas uns são mais que outros, e Olívia, no caso, estava abaixo dessa média. Não era tão surtada – exceto na TPM (por mais que isso soe um pouco clichê). Eram três, quatro dias no mês que ela era capaz de tudo. Mas só isso.

A normalidade de Olívia está também na sua aparência. Imagine alguém normal. Uma mulher comum, com cabelo normal, cor, os olhos que geralmente se tem, formato de nariz, boca e tal. Essa é Olívia.

Sua idade é um pouco irrelevante para essa história, mas deixemos claro que Olívia é uma pessoa vivida, tem lá a sua cota de experiências, já pisa nessa Terra há um certo tempo, já é calejada de algumas coisas. Talvez até por isso se mantenha solteira – a gente adquire uma sabedoria com os tempos de relacionamento (especialmente os errados e os fadados ao fracasso). Mais do que “quero alguém que”, a música toca mais ao som de “não quero alguém que”. Olívia nem fazia questão de dançar.

Por isso, dormia e acordava sozinha já há algum tempo. Não tinha do que se queixar (ou até que tinha, mas se consolava se dizendo que mais valia ficar só a se enroscar em alguém que descaralhasse sua mente).

Até ali era isso que tinha acontecido.

Tinha se envolvido com algumas várias mulheres, não seguia necessariamente um padrão, deu chance a vários tipos. Deu ruim em todos eles. Tinha várias histórias para contar, as pessoas sempre riam. Ela, não. Algo comum que acontecia com Olívia: ela tinha uma narrativa meio cômica, meio sem querer fazia as pessoas rir, mesmo quando falava sério. Isso pode ser um desastre em alguns casos!

O fato é que Olívia já tinha a maturidade de aceitar que cada ser carrega um mundo consigo, que inclui traumas do passado, família e criação recebida e vários outros tipos de frustrações e bloqueios (que ela encaixava até o signo e o CEP). Em teoria o rolê era relativamente simples, mas as pessoas conseguiam cagar no pau. E traziam bagagens pesadíssimas. Ela tinha preguiça desses pesos.

Olívia se ocupava bastante com ela mesma, quase não tinha tempo para se dedicar a alguém.

Era esse tipo de afirmação que ela se fazia todas as manhãs em frente ao espelho, depois de lavar o rosto e escovar os dentes. Nessas horas ela sempre verificava a evolução das rugas no rosto (“marcas de expressão”) e a soma de novos fios de cabelo branco. No começo ela arrancava os mais evidentes, mas acabaria careca. Parou a tempo, por sorte.  

A verdade é que Olívia se entristecia, secretamente, por não ter um parzinho. Se alimentava de uma esperança, que ninguém sabia, de um dia ter ali alguém com ela. Morria de medo de um dia acontecer alguma coisa e ninguém sentir sua falta. A achariam talvez porque alguém reclamaria do mau cheiro, semanas depois. Seu receio era ser resumida a isso: um corpo em decomposição.

Tantas histórias, tantas vivências, e no fim somos apenas um amontoado de carne com prazo de validade. Olívia acreditava que a morte representava um fim, e isso era um peso que ela nem sabia que carregava.

Depositava tanta fé naquele corpo frágil que se esquecia de ver a divindade da vida. A divindade do ser; dela mesma.

Mas Olívia tinha alguns pensamentos que não se permitia ter, e os prendia em caixas com várias trancas quando eles surgiam, esporadicamente. Aquele era um deles. O fim de tudo, de sua existência, da sua história. Não gostava do arrepio que acompanhava o assunto. Selava-o com uma fita escrito “enquanto houver vida, viva”.

Ela vivia. Um dia de cada vez, tentando se manter com os pés no presente, o mais fincados o possível. Mas reconhecia que de vez em quando se acorrentava a balões imaginários e flutuava no país das maravilhas. Era tentador demais não mergulhar naquele céu!

Tinha bilhetes espalhados em post-its lembrando-a dos compromissos, dos afazeres. Tinha que manter a seriedade da coisas, ela se dizia.

Quem sabe devido a isso Olívia era um pouco metódica, precisava começar o dia sempre da mesma maneira, e quando eventualmente fazia algo diferente se perdia, ficava mal-humorada. Por isso precisava varrer a casa antes de qualquer outra coisa, e acendia sempre um incenso no fogo que esquentava a água do café. Todo dia ela fazia tudo sempre igual. Mudava só o aroma do incenso, às vezes. Seis da tarde, como era de se esperar, Olívia saía para andar. Tinha uma meta de passos por dia para cumprir (oito mil).

Se chateava quando chovia, mas saía na chuva, mesmo assim. Gostava daquela sensação da água batendo na pele, se sentia sempre um pouco mais viva nessas horas. Eventualmente sentia frio e respirava mais forte, e isso ajudava a ampliar essa sensação de vitalidade. A chuva, quando um pouco mais intensa, te dá umas taponas na fuça que é para você acordar, mesmo. É bom que você pode chorar e ninguém nem nota.

Olívia tinha uma metodologia toda própria nessas caminhadas, ia sempre pelo mesmo lado da rua, sempre atravessando nos mesmos pontos, desviando nos mesmos trechos. Ela conhecia bem o trajeto e seria capaz de fazer esse percurso de olhos fechados, mas não tinha essa necessidade, então se mantinha bem alerta.

Naquele domingo, branco (com muitas nuvens, garoando) e quentinho, dentro daquele moletom azul, Olívia viu no chão algo reluzente, brilhante, chamativo. Parecia um holograma. Parecia algo feito de algo que ela não saberia especificar. Refletia o sol, que era tímido, mas causava uma espécie de sombra, condizente com a chuva que se anunciava, e dependendo de como se olhava dava a impressão de nem estar ali.

Mas estava. Era uma chave. Era um achado.


Parte 2

Olívia se abaixou, mas não sentiu os dedos encostarem no objeto reluzente (não sentiu mais os dedos, na verdade). Porque se fundiu a ele, de alguma forma. Se tivesse esse conhecimento, ela diria que o efeito se assemelhava a quando se toma doce: o LSD pode fazer parecer que as coisas todas se derretem de algum jeito, se fundem, se mesclam. Dançam diante dos olhos, te chamam para bailar! Olívia se sentiu numa festa! Numa balada psicodélica com mil luzes piscantes e cores que ela nem imaginava que existiam.

A sensação era igual àquelas segundos antes de se desmaiar, quando a consciência vai se esvaindo, e as amarras do corpo, que nos prendem sob a gravidade, vão se desprendendo, devagarzinho (mas também numa velocidade impressionante; o tempo muda!). E a pessoa vai se entregando ao todo, a tudo. Ela se entregava, porque era irresistível, e porque na ausência do medo a gente topa qualquer parada.

Olívia perdeu a consciência, porque ganhou uma nova: a coletiva. Passou a fazer parte de tudo: ela era chave, era chuva, era chão. Passou a ter uma noção ampliada da vida, dela própria: passou a ter acesso à fonte geradora de tudo e ela sentiu o amor, sublime, lhe invadir o corpo, lhe banhar a alma, e antes de perceber, já era amor também. Sempre fora, mas estava esquecida. Como uma gota, apenas, num oceano inteiro, mas parte daquilo, ainda assim.

Sentiu alívio. Era quase o oposto ao seu nome, à sua rotina, aos pesos que carregava – de maneira consciente e inconscientemente também. E nesse instante percebeu que não era ninguém, especificamente, porque era todos. Ela era uma luz fracionada em pequenos frasquinhos, em coraçõezinhos se experimentando em vidas diferentes. Era homem, mulher, criança, velho. E era também a árvore ali da esquina, era as raízes encostando no lençol freático, era toda a terra ali embaixo de tudo; era tudo.

E constatar isso a deixou tão leve que se sentiu flutuando. Não porque voasse; ela era o ar. Ela era o céu. E se sentiu expansiva, expandida. Poderosa! Brilhou como o sol acima daquelas nuvens.

Extasiada, se deixou ir. Se desapegou dela. Como se tivesse concluído sua missão, ou encontrado com algum tipo de atalho.

Naquele dia, Olívia não voltou da caminhada. Ninguém reclamou de mau cheiro porque ela se conscientizou também de que era aqueles aromas que vêm de repente, trazidos por alguma brisa. E não havia corpo, não havia carne – tudo o que havia era aquela chave, quase não vista por ninguém.

Dizem que a vida nos testa, às vezes colocando pelo nosso caminho esses objetos, tão comuns. Poucos são os que acatam e, entre estes, nenhum fica para contar história.


(Espero que essa história volte à sua mente quando você encontrar alguma chave no chão!)


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