O conto

I

O tempo é, talvez, um dos maiores artistas da vida. Porque ele lapida, quilate por quilate, a vida de cada pessoa. Ao nascer, cada ser tem em si um potencial de ser muitas coisas – que fogem um pouco do quesito “bom” ou “ruim” porque isso é muito subjetivo, às vezes. Somos sementes fadadas a sermos muitas coisas (inclusive o que queremos ser). E com Júlia não era diferente.

Filha do meio de uma família dita comum, ela teve a liberdade de escolher o que ser – e por algumas épocas vagou no terreno do “não ser”; não queria “ser” nada. Apenas ela. Então só vivia e a vida lhe trazia as situações (não é assim com todo mundo?). Andava na corda-bamba dos dias.

Mas em dado momento assumiu as rédeas da própria vida. Percebeu que assim era mais fácil se responsabilizar pelos acontecimentos – muito melhor do que simplesmente se culpar, depois. E aí passou a decidir até o que não queria decidir. Acontecia, também.

Ela, no fundo, sabia que mesmo tendo lá as suas metas estipuladas, a vida se encarregava de ter as suas próprias missões. Às vezes a gente se programa, mas existem outras programações, reservadas para cada uma de nós, e a gente nem fica sabendo (só depois).

Quando mais nova, queria ser atleta. Era hiperativa, fazia sentido. Imaginava sempre que estava a galope, montada num cavalo imaginário. Ele trotava; ela também. Sua mãe dizia que ela não parecia saber andar; só corria. Lhe dizia também que não chegaria aos 15 com todos os dedos dos pés inteiros (vivia se machucando, estava sempre com pressa, era difícil calcular todos os seus movimentos).

Fez atletismo, praticou futebol de salão, vôlei e basquete (mesmo com baixa estatura). Se locomovia sempre de bicicleta e patins. Só parou de subir em árvores aos 11, e só porque uma vizinha a traumatizou, fazendo-a amadurecer cedo demais (na ocasião questionou se ela não estava “muito grandinha” para ficar pendurada nos galhos). Ela só não despencou da árvore naquele dia porque era extremamente ágil. E também porque conhecia aquela árvore desde mudinha.

Há pessoas que têm o dom de alterar alguns cursos de vida e nem se tocam que são pedras.

Outras nos transformam e sabem do impacto causado. Nós mesmas exercemos esse papel na vida de alguém, eventualmente, alguma vez.

No passado os pais de Júlia eram pessoas sociáveis, então era comum acontecerem churrascos, eventos, festinhas – na sua casa ou na de seus amigos. Ela participava porque nesta fase ainda não tinha muito poder de decisão. Mas não reclamava. Era divertido. Por causa disso, de certa forma, aprendeu a cozinhar salsicha, ainda nova – a primeira receita que dominou na cozinha, depois de café. Refoga cebola, pimentão e tomate e voilà. Junta o molho e é um cachorro-quente de primeira.

Talvez por isso, anos mais tarde, esse refogado era a base de muitas das suas comidas.

Dentre as pessoas que circularam com frequência na sua juventude havia uma família mais próxima: pai, mãe e quatro filhas – Alexia, Esther, Isolda e Úrsula. Sim, um acrônimo de quase todas as vogais. As idades das meninas era mais ou menos a mesma, não era lá muito difícil socializarem. Mas a afinidade maior era com Isolda. Sei lá, “o santo batia”.

Brincavam de casinha, esconde-esconde, jogos de tabuleiro, mímica, Lego, Playmobil. Brincaram até de médico uma vez, aos dez, mas a mãe de Júlia quase as flagrou, e aí ficaram com medo de repetirem. Só porque pareceu errado (porque tinha sido uma brincadeira bem gostosinha!).

A vida parecia normal com Isolda. Não sei, diferente. Se compreendiam de um jeito especial.

E aí, toda aquela energia de Júlia, tão típica, tão dela, foi se assentando a cada brincadeira, a cada festinha, a cada nova receita aprendida, e a vida se encarregou de trazer novas amizades (para ela, para os pais, para Isolda e sua família quase alfabética). E então as pinceladas do Senhor Tempo lhe apresentaram duas ferramentas antagônicas, que lhe forjaram, lhe deram nova forma: maconha e meditação. Tornou-se tão pacata e tranquila que não corria para mais nada (nem mesmo para se exercitar, apesar de ter planos para isso, um dia).

Meditava ao fumar. Quando fumava, meditava. Só às vezes esquecia.

Era notável (ainda é) como a cada minuto a gente se transforma um pouco. Reforçam-se alguns traços de personalidade, contornam-se outros. E, como em qualquer caminhada, nem sempre se notam os passos, um por um, apesar de sabermos que eles é que constituem o tudo; que sem eles não se chegaria a lugar algum.

Júlia não via seus passos; não sentia o chão sob a sola de seu pé, quase sempre descalço. Tampouco percebia o que ia ficando pelo caminho – tudo o que vamos deixando para trás, para que a caminhada seja mais leve. Quanto que se abre mão para se ter mais e nem se nota! Vão-se os dias, as pessoas, as rotinas. Mudam-se os cenários, os diálogos, os anseios.

De repente a gente vira aquelas pessoas que nem reconheceria se visse na rua. Mudamos muito além da aparência.

Na vida adulta quase ela já não tinha aqueles traços pueris. Mas era, ainda assim, o resultado daquela semente inicial. Lá dentro ela ainda era ela. Júlia só se esquecia disso, eventualmente. Ou não pensava a respeito. Apesar de sua mente invariavelmente voltar para aquelas tardes de verão no clube de campo, quando acampava e se divertia. Muitas vezes na convivência com Isolda.

É curioso como a gente não percebe a mudança de tudo conforme os dias avançam. Há muitos casos em que não percebemos nem mesmo a própria mudança dos dias. Eles só se apresentam, e se vão, como ocorre com as ondas do mar num dia de praia. Nos acostumamos com tudo, até com o que não deveríamos nos acostumar, por exemplo, com o passar da vida (que está longe de ficar num vai-e-vem, apesar de às vezes ficarmos com essa impressão). Os pés vão se afundando e ninguém mal nota. Se nota, reclama (porque há uma tendência de a vida ir perdendo a magia, conforme avançamos na linha do tempo de nossos dias).

Deveríamos aplaudir cada pôr do sol, cada respirar, cada primeira estrela que surge no céu que escurece.

Não era sempre, mas às vezes Júlia se pegava olhando para o céu e pensava nisso: em como somos bobos de nos permitirmos nos poluir depois de crescidos. Isso anos mais tarde, quando essa história aconteceu.

 

 

II

Na possibilidade de ser o que quiser, Júlia optou por ser revisora de texto. Ou quase isso. Era o que ela fazia: ganhava a vida corrigindo os erros das histórias dos outros. Se dizia artista das palavras – e seu trabalho era mesmo quase de lapidação. Suas ferramentas eram aquelas disponíveis no software de texto do seu computador (bem utilizadas pela sua genialidade, diga-se de passagem). Entregava sempre um primor de texto, uma obra-prima, segundo o gosto do artista inicial (ou seja, o resultado também dependia da matéria-prima. Era revisora, afinal de contas, não mágica).

Se concentrava rotineiramente nas palavras e vírgulas dos outros enquanto mantinha as suas próprias no cabresto. Por dentro, engolfava-se com as suas próprias histórias, que insistiam em escapar, e ela persistia em engolir. Porque nessas de podermos decidir nossas vidas às vezes acontece de optarmos por sermos nossos próprios vilões. De maneira inconsciente? Sim. Mas conscientemente também.

Júlia tinha em volta de si algumas muralhas erguidas por ela mesma. Bloqueios diversos, alimentados, dia após dia, ano após ano, como feras contidas em jaulas, acorrentadas a pés de cadeiras. Ali cresciam, também, como erva-daninha, crenças limitantes que já atingiam o tamanho de cinco palmos. Cenas que faziam já parte daquele cenário. Ela mal os notava.

Mas a moça não era nenhuma mocinha indefesa – longe disso. Sempre foi uma protagonista de sua própria história, e do tipo guerreira, que enfrenta com destemor todas as batalhas que a vida moderna impõe: rotinas estressantes feita de pequenos grandes feitos, por exemplo, sair da cama pela manhã, manter a casa organizada, ter um tempo para o lazer e descanso.

Sua rotina, naquele presente, aos 30 e poucos anos, se resumia a ficar na cama. Dormindo, trabalhando, e ficava por ali também nas suas folgas. Mudava as posturas e os locais do colchão conforme a atividade desempenhada, de acordo com o avanço dos ponteiros que indicam incansavelmente que o tempo avança – uma dança diária naquele ponto específico do quarto. Júlia se levantava ocasionalmente e, segundo os registros feitos pelo relógio preso em seu pulso direito, caminhava cerca de mil passos dentro do seu apartamento, que era pequeno, mas ela cabia bem.

Tinha a oportunidade de sair todos os dias; havia, durante um tempo, toda uma rotina arquitetada segundo os dias da semana, que pareciam curtos. Eram bem ocupados, bem preenchidos (quase não sobrava tempo para ela). Se dedicava a muitas causas que achava justas.

Mas tudo mudou em março de 2020, no começo da pandemia. Agora basicamente Júlia ficava ali, enfurnada em sua casa, reclamando de ter que trabalhar quando só queria escrever (ou olhar a vizinha caminhar na própria varanda. Amava ficar “curiando” a vida alheia. Tinha uma história inventada para cada janela de cada prédio à sua frente).

O tempo, para Júlia, agora tinha outro ritmo. Tudo muda quando se é obrigada a conviver somente com você mesma. Emagreceu 12 quilos nos primeiros cinco meses, porque navegou pelas águas do desânimo, mas acrescentou 27 novas músicas à sua playlist. Quase era possível afirmar que mudou o gosto musical naquele período! Ela mudou. Se rodeou dela mesma e aquela convivência lhe foi muito benéfica.

Ao contrário do que previa, nunca mais ligou a tevê. Experimentava o ineditismo de viver com seus personagens, amarrada às cenas que sua mente criava. Liberou todos dos calabouços sombrios do seu ser. Todos os “Era uma vez” soterrados pelos compromissos da vida adulta, submergidos pela responsabilidade imposta, vieram à tona com o isolamento – e talvez só porque aquele rio secou e tudo se tornou mais evidente, mais aparente. Esse é um processo aparentemente natural.

Mudanças drásticas causam resultados igualmente drásticos. Ela experimentava aquele contato com pessoas que eram quase tocáveis. Criadora e criaturas empoleiradas num colchão de molas, envoltas nas tênues e sutis malhas, finas, da criatividade. Foram dias assim. Noites, também.

E ela não previa o final – que na verdade era apenas a metade de tudo. Nunca se pode esquecer que cada ação gera uma reação – nada fica impune diante do universo. Júlia estava semeando, a colheita logo chegaria. Mas até lá algumas intempéries a brindariam.

No fim, são as tempestades que geram os arco-íris. Disso ela sabia.

Um dia largou o computador (seu instrumento de trabalho, e de lazer, sua janela para o mundo real e também o imaginário), que a esta altura estava colado com silver tape (porque estava desmontando. Literalmente estava com um parafuso a menos). O movimento lá fora lhe chamou a atenção. Havia urubus voando lá no alto, bem ao longe.

Era incrível a sua capacidade de se desligar – dos afazeres, dos deveres, dos serviços. E nem precisava de pássaros pretos de longas asas, que neste instante se moviam apenas segundo os fluxos do vento, ao seu bel-prazer. Tudo desviava sua atenção; era fácil se perder.

Ao menos naquela vez reconheceu uma vantagem: os urubus a fizeram se lembrar de Isolda (que lhe contou, lá na infância, da função de “lixeiro” que essas aves desempenham), e só a menção àquele nome fez Júlia sorrir. Caramba, quanto tempo se passou! Como ela estaria? Como estariam todos – seus rostos, suas vidas?

Fez o que uma pessoa sensata, com prazo de entrega de trabalho estourando, faria diante daquela lembrança, e responsabilidade: foi procurar Isolda no Facebook. Como era mesmo o seu sobrenome? Era uma mistura de sobrenome brasileiro e japonês.

Mandou mensagem no grupo dos irmãos. “Ei, como era mesmo o sobrenome da Isolda, lembram dela? Quero ver como ela está hoje”. Ninguém lembrava (o caçula teve dificuldade de lembrar da pessoa a que ela se referia). A última vez que se viram foi depois daquela Copa dos pênaltis. Putz, outra vida!

Fazia duas semanas que não conversava com a mãe. Mandou um zap: “Qual era o sobrenome da Isolda, filha daqueles seus amigos, você lembra?”. Por um pouco de birra (Júlia não mandou mensagem no dia das mães – alegando ser apenas uma data comercial), a mãe não respondeu.

Lembrava o sobrenome: Souza Takeshi.

 

III

Dizem que boas ações geram boas consequências. Mas foi furando o isolamento (à época já perto do fim, porém, ainda em vigência) que Júlia descobriu, finalmente, o sobrenome de Isolda. Estava momentaneamente distraída, num almoço de família, quando aquela sonoridade (Isolda Souza Takeshi) lhe brindou os ouvidos. O pai que lembrou. E nem estavam falando a respeito, na ocasião.

Para Júlia, virou um passatempo até que sério, nas tardes trancafiada, vasculhar as redes sociais atrás de alguma pista daquela mulher. Era difícil, os vestígios de Isolda eram escassos, quase inexistiam. Pode procurar: não existe. Fica desafiador até para quem é bom na arte de stalkear (palavra gringa que já virou até verbo).

“Por que essa fixação?”, queriam saber. Júlia sabia de muita coisa, era uma pessoa estudada, vivia com a cara enfiada nos livros, mas ainda assim não tinha respostas para tudo. E virou quase uma obsessão, mesmo. Era questão de honra encontrar Isolda, ou alguém da família que levasse até ela. Precisava, porque... sim!

É fácil encontrar motivações quando se vive uma pandemia.

E Júlia tinha o dom de postergar suas atividades, tinha uma preguiça que às vezes mal cabia nela. Era a rainha da procrastinação. Era perita em investir seu tempo em atividades fúteis. No fim do dia, quando preenchia o aplicativo de humor com as atividades desempenhadas (há quase mil dias seguidos), tinha até dificuldade em se lembrar do que tinha feito. Era comum não fazer muita coisa ao longo de um dia.

Como se não tivesse mais nada para fazer, depois de um tempo constatou, a contragosto, que nem todos estão nas redes sociais, ou na internet, de alguma forma. E alguns não estão porque morreram (parece trágico, mas é uma realidade. Pessoas morrem, ué).

Seus pensamentos, sempre terminativos, rumaram para aqueles lados. Claro, ela sempre pensava o pior de tudo, principalmente para si mesma, por que seria diferente desta vez? Conhecia gente que tinha morrido; conhecia muitos que ainda estavam vivos (e eram a maioria). Então se convenceu de que provavelmente Isolda só era reservada, vivia à moda antiga. Esta também era uma possibilidade.

Fez algumas pesquisas, com algumas variações, e encontrou quase todas as pessoas (Úrsula, Esther, Alexia, a mãe). Foram dias de busca (nessas horas a gente vira detetive) e não encontrou nada além de uma única fotografia – com Isolda no canto, quase borrada. Estava viva, afinal. Aparentemente era uma pessoa tímida. Ou Júlia que era estúpida: custou a perceber que, na verdade, nunca via a mulher nas fotos porque ela era sempre a fotógrafa. Reconheceu um logo em várias fotografias da família nipo-brasileira.

Pessoas tendem a ser mais reservadas do que empresas e... “enviada”. Mandou uma mensagem na página da agência de Isolda e nem pensou. “Oi, lembra de mim? A gente brincava quando era criança”. Depois ficou pensando se deveria ter enviado uma foto daquela época para facilitar a identificação e quando ia se levantar viu que a mensagem foi lida. E estava sendo respondida.

Marcaram um café com bolo, na tarde seguinte. Ia ser dali dois dias, mas Isolda questionou, um pouco seca, “por que não amanhã?”. Não moravam próximas, mas não era longe. Dava para se verem. Por mensagem, pouco falaram. No fim, Isolda aparentava ser realmente tímida e reservada. Ou só estava fazendo a #misteriosah

Júlia jamais saberia, mas Isolda fez sua ficha corrida. Ela, sim, era boa em investigações.

Na manhã daquele dia Júlia quase esqueceu do compromisso. Mas se lembrou a tempo de limpar a casa e lavar a louça, que já a aguardava há quase uma semana (morava sozinha e se impressionava com sua capacidade em sujar panelas, mesmo quando quase não comia). Passou pano, tirou pó, acendeu incensos, trocou o sal grosso de trás da porta e dos cantos do quarto. No banho também deu aquela geral.

Se depilou como há muito não fazia – no zero; no talo. Não gostava, sempre se coçava depois, mas percebia que, em geral, é como as mulheres apreciam (ela, não. Júlia, na verdade, gostava de pelos, principalmente aqueles que são bem macios e dá vontade de ficar passando a mão uma tarde inteira, enquanto assiste Netflix).

Aproveitou o ensejo e se masturbou no chuveirinho. Se encurralou no cantinho do box, levantou uma das pernas, só um pouquinho, e contraiu-se enquanto direcionava o jato, certeiro, bem no clitóris. Era um gozo breve, quase artificial, mas suficiente para conter o fogo que ela sentia naquelas partes.

Não tinha a menor ideia de como seria aquele “bolo com café”. Na dúvida, era válido estar preparada (“gozada”, no caso, mesmo que à base de chuveirinho!). Tinha horror de se imaginar gozando rápido em companhia de alguma dama, por afobação, por ansiedade.

Marcaram às 15h. O interfone tocou às 15h05. O cachorro latiu até às 15h07, quando ela apareceu no corredor, depois que a porta do elevador se abriu e o seu cheiro se derramou junto dela. Usava salto, vestido e carregava um bolo. Tirou a máscara (acessório de muita gente, mesmo depois do fim da covid) quando entrou na sala, e revelou um sorriso ali embaixo. Deu um beijinho nela segurando o bolo com uma mão e, com a outra, puxou-a de levinho pela cintura (quase só tocando, mas deixando ali algum recado, com a rigidez das pontas dos dedos).

Júlia se sentiu boba, à princípio. Não tinha nem penteado o cabelo (que estava todo raspado, exceto a franja. Ela só lembrava disso quando sentia a água do chuveiro fazer cosquinha na careca). Estava em casa, bem à vontade, nem colocou sutiã e tinha calçado a pantufa porque seu chinelo arrebentou na faxina. A regata deixava à mostra algumas de suas tatuagens, coloridas. Notou que, assim como com ela própria, aquela era uma versão “espichada” de Isolda. Quase não tinha mudado, mas era muito diferente. Era uma mulher, agora, afinal.

Dela vibrava uma tensão, sexual. Esquisita, mas prazerosa.

Isolda se sentou no cantinho do sofá. Tirou a sandália e cruzou as pernas. Parecia a Branca de Neve. Tinha um perfume forte, um pouco incômodo, à princípio, mas que fazia formigar a parte de baixo da barriga de Júlia. Como se houvesse um elástico ali dentro, entre vagina e umbigo. Algo nesse caminho se contraía e relaxava, toda hora, involuntariamente. E a deixava molhada. Assim, de graça. Ou Isolda é quem emanava algo que entrava na sua cueca e provocava esses estalos que a faziam jorrar. Era capaz.

O bolo era de churros, enjoativo, e o café, forte, ficou ruim por causa do gosto doce na boca. Mas Júlia não movia nem um músculo. Não desviava o olhar de Isolda, que contava histórias um pouco íntimas demais para alguém sem tanta intimidade. Com potencial de ser tantas coisas, Isolda era uma mulher casada que não fazia sexo com o marido, e tinha o traído recentemente com um vizinho (marido de sua amiga). Era uma safada, sem vergonha! Olhava para Júlia com uma quase cobiça. Parecia estar com fome (de pele). Deixava a moça constrangida.

Não que Júlia fosse puritana, ou dotada de muito senso de justiça ao ponto de recusar uma foda por causa de uma aliança no dedo, mas se sentia meio mal por isso. Era muito empata, se colocava no lugar da pessoa traída e aí ficava meio travada. Mas também era humana, e Branca de Neve era muito bonita, e Júlia percebeu que Isolda também tinha o toque muito macio, quando sua mão roçou de leve a lateral de seu rosto, fazendo-a fechar os olhos um pouquinho e soltar o ar mais devagar, como num suspiro. Era um gesto gentil, mas a atiçava como brasa dentro dela.

 

IV

“O que você achou que eu vim fazer aqui hoje?”, Isolda quis saber, próxima demais da boca de Júlia. “Conversar e comer bolo?”, questionou Júlia, demorando mais tempo na piscada do que gostaria. “Ai, Júlia...”, rebateu a mulher, em tom de crítica e deboche. Tinha um sorriso nos olhos, mas a boca permanecia séria. “Você agiria diferente se eu dissesse, simplesmente, que sou lésbica?”.

Aquela pergunta provocou a contração involuntária, ela até mexeu sem querer um pouco as pernas, a pélvis, na direção de Isolda, meio que se oferecendo. Amava essa palavra: “lésbica”. Soava como trombetas que anunciam a entrada das portas dos céus. Isolda quase lambeu o lábio superior para pronunciar a primeira sílaba, e deu uma mordidinha no lábio inferior, ao proferi-la. Muito sexy.

Júlia sentiu vontade de lamber a sua boca, de sentir a sua língua. Repetia a palavra, bem baixinho, “lés-bi-ca”, quando Isolda pareceu concluir a leitura dos seus pensamentos, e passou de levinho a ponta da língua na abertura da boca de Júlia, que parecia convidá-la para entrar, encostando a sua própria língua, bem de leve, bem molhadinha.

Sentia a maciez e a umidade da sua língua, a lambendo. Sentia também a respiração de Isolda, que saía entrecortada pelo nariz e por entre os dentes. Da sua expiração vinha o seu cheiro, o verdadeiro, lá do âmago. Esse perfume também atiçava e lhe dava comichões entre as pernas.  

Isolda tinha pressa. E mesmo com vontade parecia apenas repetir um padrão de beijo praticado com outra pessoa. Isso deixou Júlia impaciente, um pouquinho irritada. Quis dar um tapa nela, aqueles de levinho, que algumas mulheres gostam (quase precisam), para se acalmar. Para voltar a si. O pensamento a fez rir, e se afastar. Mas Isolda já estava se despindo, ela sim se oferecendo, de joelhos ali na sala, só de calcinha e sutiã.

Uma delícia, muito gostosa. Padrãozinho, bem hétero, mas muito sensual, toda trabalhada na volúpia, na luxúria e na lingerie rendada. Praticamente de quatro ali perto do sofá, se oferecendo para ela. Aquele era o melhor reencontro, ever.

Quis ficar nua – ela mesma se despiu, oferecida. Era evidente que há muito tempo não recebia “um trato”; a atenção que merecia. Era exibida, mas Júlia via ali um que de desespero. Só por isso deixou que ela ficasse à vontade, e fizesse o que quisesse.

Isolda quis sentar em seu colo, despida, aberta, molhada. Quis segurar em sua nuca enquanto a beijava, a lambia, interrompendo o beijo para percorrer com a língua toda a lateral de seu rosto. Lambeu até o olho, o lóbulo da orelha, mordiscou o pescoço.

Roçou os seios contra a camiseta de Júlia, os mamilos endurecidos, quase doendo. E rebolava, se esfregando, tentando algum toque, algum contato. Queria mostrar que já estava molhada. Queria que Júlia visse como ela a queria. Que já estava pronta para ela – ou ao menos imaginava que estava. Isolda é daquelas que repete padrão sem pensar. Estava com tesão por uma mulher, mas se comportava como se estivesse diante de um macho.

Júlia percebeu isso. Sabia ler as pessoas, era boa em linguagem corporal. E por isso quis punir Isolda. Mostrar que ela estava diante de uma mulher; não de uma pessoa qualquer. Não era o seu marido, seu amante ou quem quer que ela tivesse estado. Não era nem mesmo uma mulher qualquer; era uma lésbica. Ela disse essa palavra novamente, em sua mente, mas seu sorriso foi externo.

Levantou-se meio de repente, inclinando Isolda contra o sofá, empinada. Deu um tapa na sua bunda, deixando quatro dedos bem marcados na nádega direita. A mulher nem gemeu, só se contraiu um pouquinho, surpresa, um pouco em choque, e logo se empinou novamente, oferecida. Sabia que merecia aquele tapa – e o que veio na sequência, agora entre as pernas, molhando os dedos de Júlia no contato da palmada. Nesse ela gemeu (mais de prazer do que de dor). Porque demonstrou querer outro, ganhou mais um, um pouco mais forte.

Ela se contraiu e se reergueu, em fração de segundos. Parecia uma mola, só que molhada.

Júlia tirou a bermuda, a cueca, e deitou-se cruzando as pernas em Isolda, que estava ofegante, quase visível debaixo daquela maquiagem carregada, deitada meio de lado no sofá azul. Encostou sua buceta bem aberta em Isolda, bem molhada, e demoraram só alguns segundos para se encaixarem, no ritmo, na intensidade. Júlia viu quando ela virou os olhos, por puro prazer e deleite.

Se mantinha com as pernas bem abertas, quase doíam as virilhas. Júlia tinha a perna em cima dela, atravessando seu corpo, com o joelho entre os seios. Se segurava na perna de Isolda, dobrada, e ficava molhada só de sentir o quão molhada a mulher também estava. Ela escorria. Eventualmente o movimento as afastava e era perceptível toda a troca de fluidos.

Isolda já tinha visto aquela cena em filmes pornôs, mas só agora entendia como aquelas coisas eram projetadas muito mais para satisfazer o desejo masculino do que para ofertar prazer a mulheres (lésbicas ou não). O que via (e, principalmente, o que sentia) era muito diferente. Muito mais real, palpável, e infinitamente mais excitante.

Sentiu o corpo de Júlia se contrair, e apertou um pouco mais forte a sua perna, segurou bem firme na sua bunda, que se movimentava para frente e para trás, agora um pouco mais rápido. Sorria, e quase não conseguia manter os olhos abertos.

Corpos suados, ritmados, num movimento constante, prazeroso. As respirações eram audíveis, alguns gemidos escapavam sem querer, e Júlia gozou primeiro, porque estava muito gostosa aquela fricção toda. Se sentiu contraindo, pulsando em cima do sexo de Isolda, que apertava sua perna contra o peito, e deu a entender que gozaria também, mas seu celular tocou, e se desconcentrou.

O marido estava lá embaixo. Era desconfiado, tinha ido atrás dela.

Júlia viu a mulher recolher as roupas com pressa, o cabelo todo despenteado, teve dificuldade em abotoar o sutiã. Ficou tremendo, parecia bem nervosa. Ela não ajudou. Se ajeitou no sofá e acendeu uma ponta que estava no cinzeiro, em cima da mesinha. Ainda estava latejando, pernas entreabertas, quando a outra deixou seu apartamento, deixando-a em companhia daquele perfume que ainda a excitava.

Levou quase uma semana para acabar de comer aquele bolo. Só não demorou mais tempo para encontrar a calcinha de Isolda, debaixo do sofá. A mulher tentou contato depois, mandou algumas mensagens. Mas com tanta xoxota nesse mundo, por que Júlia insistiria em uma complicada?

Até hoje, quando questionada, Júlia se faz de louca. Diz que naquela tarde não rolou nada entre Isolda e ela; apenas comeram bolo e falaram sobre a vida.

 

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