A Leitora (conto)

ATENÇÃO: este conto contém temas que envolvem violência sexual, abuso e tortura. 
Recomenda-se parcimônia (amo essa palavra!). 


Primeira parte
Naquela noite, deitou cedo, não era nem 21h direito. Estava entediada e a chuva lá fora, que não dava trégua há três dias, a incentivava a se enfiar mesmo debaixo das cobertas. Era agosto e aquela era uma das poucas frentes frias que a obrigava a usar meias, até ali – um par bem “chegay”, listrado, que ia até a metade da canela. Nos pés calçava pantufas que simulavam patas de algum animal peludo e por cima do pijama tinha se coberto com uma manta fininha, que estava sobre os ombros, dando à moça uma aparência que em nada combinava com a sua personalidade, mas que ficava condizente com a caneca de chá fumegante que trazia em uma das mãos.

Amanda nem se importava em como estava vestida; estava friozinho, era sexta à noite e ela estava em companhia de um bom livro. Se permitia ficar em casa à vontade – na verdade aquele era o único lugar, no mundo, onde ela se dava ao luxo de ser ela mesma, comodamente. Naquela kitnet, longe de todos os olhos e de toda censura contida ali, ela usava seus pijamas velhos, suas calças furadas e roupas que um dia tiveram seu momento de glória, e agora estavam fadadas a nunca mais saírem nem mesmo até a calçada.

Estava sempre sem calcinha, o que para ela era o ápice da liberdade.

Caminhou até o quarto sem prestar atenção no trajeto, e quase pisou no gato, que estava ali na porta, se lambendo. Ele deu um miado meio contrariado, e deitou-se bem na ponta da cama – no outro extremo onde Amanda agora se sentava. Ela mantinha os olhos vidrados no celular, mal piscava. Tinha encontrado um romance muito bom num site de literatura lésbica. Era um conto bem amarrado, com personagens complexos, mas ela lia um pouco ressabiada porque a história ainda estava incompleta. Já tinha havido casos de ela se encantar por um enredo que no fim não se concluiu. Era um risco que corria tendo acesso à leitura marginal.

Ela adorava. Era um mundo que acessava ali, na palma da sua mão, distante do lobby editorial, e que lhe permitia não apenas ler (que ela amava, desde criança), mas também ter contato com as pessoas responsáveis pelas histórias que ela lia. Havia uma interação entre leitoras e escritoras e Amanda considerava aquela uma das maiores riquezas da tecnologia: ela aproxima mesmo as pessoas.

E agora constatava isso, mais uma vez, apertando o botão de “enviar”. Tinha escrito um comentário meloso elogiando a passagem dos capítulos; estava bem escrito. Gostava de acreditar que seus incentivos agraciavam as autoras e elas lhe retribuíam com histórias ainda melhores. Sorriu satisfeita, enfim tirando os olhos da tela e mirando brevemente na janela.

Aquele era um horário onde muitas famílias se reuniam para jantar, e ela gostava de todas aquelas luzes acesas no prédio à frente. Era um momento cotidiano, sempre a fazia pensar no natal, quando ela se juntava à sua própria família para celebrar e comerem juntos, a casa acesa, em clima de festa, de confraternização. Uma realidade muito distante da sua atualidade, desde que tinha se mudado de cidade, se desgarrando dos parentes.

A vida nos força a muitas mudanças, às vezes. Até de endereço, acontece.

Mas aquele era o maior e talvez o único empecilho de estar ali, agora. Gostava de morar em São Paulo, se sentia ao mesmo tempo parte e alheia a tudo aquilo, àquela agitação tão típica. Tinha vezes que saía à noitinha apenas para ver o movimento no bairro onde morava, Liberdade. Amava os cheiros das barraquinhas, dos restaurantes e o das pessoas também. Sentava ali nos degraus da saída do metrô São Joaquim só para observar aquela gente saindo com pressa – muitos pareciam só repetir um comportamento. Pressa para quê?

Acostumada a viver rodeada de histórias, Amanda criava algumas, se baseando na aparência das pessoas. Imaginava de onde vinham, para onde iam, o porquê de suas marcas, seus cortes de cabelo, seus adereços. Adorava observar grupos e analisar quem liderava quem. Eram sutis os gestos, mas notáveis e a partir daquilo ela criava toda uma estória.

Mas tudo apenas em pensamento. Jamais se arriscou a escrever algo porque se convenceu logo moça que estava fadada a ser leitora, simplesmente. No máximo se arriscava com algumas poesias, que escrevia num caderninho que mantinha debaixo do colchão. Mas isso não era um peso; ela achava uma dádiva. Tinha aprendido a ler sozinha, aos seis, porque sempre quis fazer exatamente isso: ler. Se admirava em como cabiam emoções em algumas páginas. Adulta, reverenciava a possibilidade de acesso que seu celular lhe permitia (quantos sentimentos cabem em um giga?). Lia muito mais agora.

Ainda assim, um dos seus maiores deleites era passear pelas estantes das livrarias, respirando fundo para absorver ao máximo aquele cheiro de folhas novas, virgens, ansiosas por uma passada de dedos, por uma passada de olhos. Amanda sempre cheirava os livros que comprava, fechando os olhos de satisfação, ainda no caixa. Se sentia viva respirando uma história nova!

Depois, já a caminho de casa, degustava cada palavra, cada linha. E quando a história era boa ela lia devagar, saboreando mesmo. Ficava sempre temerosa de acabar rápido e ter uma indigestão literária, ou não absorver todos os ingredientes que compunham algum personagem. Como um jurado numa competição, Amanda se deleitava com os traços de personalidade fornecidos pelos criadores de pessoas muitas vezes tão incríveis e até inesquecíveis.

Ela se apegava a eles e se flagrava pensando em algum dilema do livro como se o personagem fosse uma pessoa real, como um vizinho ou um colega de trabalho. Ou até além disso, já que ela se afeiçoava ao ponto de considerá-los amigos, mesmo. Sofria com eles, sorria, chorava. Tinha vezes que até aplaudia, ou só repousava o livro fechado por um instante em cima do peito, como que para fazer os seus batimentos acalmarem alguma tensão na narrativa.

Desviou os olhos das janelas alheias e pegou novamente o celular. Se sentia meio desorientada quando eventualmente ficava sem leitura, parecia que lhe faltava algo. Era quase um vazio existencial que sentia nessas horas, uma quase desolação, de verdade.

Tirou as pantufas e se recostou na cama. Nhoque, o gato, deu uma resmungada quando ela puxou para cima o edredom, afofando a coberta ao seu redor, mas recostou-se nela para dormir, aninhando antes o local com as patinhas. Bebericou um golinho do chá enquanto rolava com o dedo a tela, em busca de uma nova aventura.

Parou, sem querer, em cima de uma autora que até ali ela não tinha lido. Se apresentava como Letícia, mas Amanda sabia que ela poderia ter qualquer outro nome. Muitas se valiam do anonimato para compartilhar seus projetos, e ela sempre se empenhava em descobrir o nome verdadeiro da pessoa. Fazia pesquisas, infinitas, até achar em alguma rede social, e aí passava a acompanhar a vida de alguém que ela nem conhecia, mas se fingia amiga.

Letícia era nova na plataforma, postava no site há pouco mais de dois meses, mas tinha já até que um considerável número de textos – quase todos eram crônicas. Amanda afofou o travesseiro. Adorava essa sensação de autor novo.

Segunda Parte

Ler os escritos de alguém é conhecer muito da pessoa. Dá para traçar o perfil psicológico de alguém apenas analisando o que esse alguém produz. Sim, porque as palavras que saem da ponta de uma caneta têm total relação com a mão que escreve. Ao menos essa era a teoria de Amanda. Se achava especialista nos outros conferindo o que eles diziam, ou melhor, escreviam.

Se apaixonou pela escrita de Letícia. Leve, porém intensa, bem humorada, objetiva. Ela sempre teve um pouco de preguiça de quem se vale de muitos adjetivos, ou quem dá muitas voltas e não sai do lugar, ou quem escreve com muitos erros. Isso não acontecia com aquela autora. E em uma transição de linhas Amanda ria, suspirava ou desviava os olhos para o teto para refletir sobre o que tinha lido. Às vezes em sequência.

Em poucos minutos (na verdade foram algumas horas, mas ela nem percebeu o prédio vizinho se apagar aos poucos e adormecer) leu coisas profundas, que mexiam com ela enquanto ia absorvendo aquelas palavras, aquelas ideias. E leu também piadas do tipo “tio do pavê” que a fizeram soltar só um arzinho pelo nariz enquanto pensava “ai, Letícia, que besteira”.  

Escolheu a dedo o primeiro texto para comentar e optou por um que fazia uma analogia entre um jardim florido e o inferno (um texto ótimo, com uma boa sacada). Seu comentário foi curto, mas educado: “Amei seu trabalho. Que a Santa Inspiração te brinde, sempre”, seguido de um coraçãozinho.

Apoiou o celular na mesinha e sorriu, enquanto se virava até o gato para lhe encher um pouco o saco. O bicho deu uma resmungada, mas mesmo assim ofereceu-lhe a barriguinha. Amanda estava verificando uma manchinha em Nhoque quando o seu celular vibrou. Letícia tinha respondido sua mensagem.

Ela fez uma piada quanto ao fato de ser ateia, e perguntou se ela achava que isso a atrapalharia de receber alguma santa ajuda. Amanda a achou ainda mais divertida, e se sentiu especial por receber da sua já autora favorita uma comunicação direcionada, assim, tão rápido. Quem não gosta de ser mimado e receber um pouco de atenção, não é mesmo?

Ainda sorria quando levantou para fechar a janela. Parou um instante na beira, apoiando um dos braços enquanto segurava com a outra mão as pontas da mantinha sobre os ombros. Um vento gelado entrava pela frestinha aberta, e despenteou seu cabelo. Ela observava um morador de rua, lá embaixo, empurrar um carrinho pelo meio da rua, e puxou a franja para o lado, distraída.

De tantas histórias que as pessoas podem ter, as que as levavam a morarem nas ruas eram as que mais a intrigavam. Tinha dificuldade de imaginar que infernos tinham sido vividos para resultarem naquilo. Era triste, ela ficava triste.

Pensava nisso quando fez o movimento de fechar a janela, mas o cabelo no mesmo instante se despenteou novamente, e ao mexer a cabeça quase simultaneamente viu um movimento na janela à frente. Pareceu ter visto alguém se escondendo. Ficou alguns segundos olhando em direção de onde tinha visto o vulto, mas nada aconteceu.

“Foi só uma impressão, Nhoque, não entra na pira”, ela disse para o gato, deitando-se e se cobrindo até a cabeça. Estava ali na cabaninha, já quase dormindo, quando tudo de repente ficou claro, com uma notificação do celular: “Sua autora favorita atualizou uma história”. Amanda pensou “eba!”, mas dormiu segurando o aparelho, sem condições de ler. Já era tarde, no dia seguinte ela levantaria cedo para o trabalho.

Despertou algumas horas depois. Especificamente um minuto antes do despertador tocar, com o “plim” de uma notificação no celular. Quis soltar um palavrão, mas mudou o rumo da prosa interna quando viu piscando na tela: “Sua autora favorita atualizou uma história”. Sentou na cama, meio mole, ainda confusa do sono, e ignorou o gato miando na porta. Na sua cabeça Nhoque tinha uma voz bem fina, e sabia ser grosseiro às vezes – como agora, que parecia dizer “me sirva, vadia, tenho fome”.

Foi na ordem das histórias. Clicou primeiro na que tinha sido postada um pouco antes de ela adormecer. E conforme lia, ia arregalando os olhos, e contraindo as sobrancelhas, e a testa, e piscou repetidas vezes enquanto uma voz de narrador contava, na cadência, aquilo que Letícia tinha escrito. Basicamente era uma história sobre seu gato, Lasanha.

Seu primeiro impulso foi achar que era uma coincidência fofa (“Nhoque”, “Lasanha”), mas os elementos todos do texto, as descrições todas, tudo era muito familiar. Estranhamente habitual. OK, gatos são muito parecidos, e se comportam de uma maneira mais ou menos igual, mas peraí. Antes de formular um pensamento mais sólido, o despertador tocou, mudando a tela. Nhoque, nervoso, subiu na cama no mesmo instante e a cutucou com a pata. “Vai, escrava, me alimente!”.

“Ai, Senhor Nhoque, que saco”, ela disse, saindo da cama, pisando firme, calçando as pantufas de qualquer jeito e caminhando em direção à porta. Tropeçou na mantinha ali no chão, derrubou o celular, caiu até a bateria, que foi parar embaixo da cama. “Puta. Que. Pariu.”, ela disse. Seria um dia daqueles, certeza.

Depois de servir Vossa Alteza, Amanda ouvia do quarto a chaleira apitar, com a água pronta para o café, enquanto se contorcia tentando pegar as partes soltas do seu celular debaixo da cama, que era bem rente ao chão. Estava um pouco frustrada, não tinha pegado a vassoura para auxiliá-la na empreitada e provavelmente não conseguiria só se esticando. Se convenceu disso depois de algumas tentativas, quando se levantou, bufando, já bastante irritada, com alguns cutões formados por pelos de gato presos nas pulseiras de pano que tinha nos punhos. A chaleira, que continuava gritando que nem uma histérica, contribuiu para a irritação aumentar.

Mas Amanda se lembrou de que era uma pessoa comedida. Respirou fundo, apagou o fogo, coou o café e se permitiu ser acalentada por aquele líquido quente e miraculoso. Aí conseguiu o discernimento para pegar o rodo e puxar a bateria de debaixo da cama, a capinha, a parte da frente do celular. Achou R$ 5. Sorriu, lembrando que tudo é uma questão de frequência, e a gente recebe de onde a gente vibra.

Vibrava na paz e no amor quando o celular finalmente ligou (às vezes demorava mais para ligar, alegando uma atualização, mas ela sabia: era parte do teste). Clicou novamente no texto de Letícia, que pertinentemente se chamava “O gato xerox”. Lasanha, assim como Nhoque, era um gato preguiçoso que agia por interesse e com desdém. A última frase da crônica vinha como que para amarrar todas as impressões de Amanda: “É maravilhoso quando olho para aquela bola de pelos gorda, deitada em meio aos travesseiros, e ele se parece com as bonecas da mesinha de cabeceira, ou com os ursinhos do quadrinho na parede. Meu coração até se aquece”.

Amanda olhou para dentro de seu quarto, um pouco desanimada, sentindo o calor da caneca entre os dedos. Viu Nhoque enfiado entre as almofadas próximas da cabeceira. À sua direita, duas bonecas gorduchas, quase da mesma cor que o gato, enfeitavam a mesinha, junto com o abajur. Acima, no lado oposto, um quadrinho com dois ursinhos bordados em ponto-cruz.

Terceira parte

Amanda saiu de casa contrariada, desconfiada e se sentindo esquisita de várias maneiras. Antes de chamar o elevador inclinou a cabeça meio de lado, tentou ouvir alguma conversa ali perto. Ao atingir a calçada olhou para os dois lados da rua, receosa. Viu vários sacos de lixo perto do poste, um morador de rua dormindo ao lado de um cachorro embaixo do seu carrinho e um moleque com os olhos vidrados de crack e potencial de assaltá-la do outro lado da rua. Nenhum perigo iminente, ufa.

Seu coração ficou agitado até perto da hora do almoço. Fez umas meditações guiadas e colocou no Youtube um vídeo de Ho’oponopono. “Eu sinto muito. Me perdoe. Te amo. Sou grata”. Repetiu que nem mantra, até as palavras perderem o sentido depois de muitas repetições (o cérebro parece que dá um tilt, quando vê está se perguntando “muito? M u i t o? Mui-to?”). No começo da tarde, logo depois do almoço, Amanda se sentou no sol, perto de onde as pessoas fumavam, mas o único local que os raios alcançavam àquele horário. Foi ler então a história de Letícia, a que faltava, cuja notificação a despertou naquela manhã.

Era um poema.

Meio complexo – ou só era confuso demais (parecia um tuíte do Carluxo). Falava basicamente sobre verbos. Verbos e conjugação. Amanda não entendeu direito. Mas se convenceu de que o surto na hora do café tinha sido só um alarme falso. Aí voltou a achar fofo que a autora tinha um gato com o nome parecido do seu.

Desligou o celular aliviada e ficou olhando as rodinhas das pessoas conversando. Pareciam uniformes demais, todos vestindo a mesma roupa, dentro daquele espaço cercado por muros altos, mas ela captava a essência dos colegas. Riu sozinha ao constatar de que era mais fácil ler aqueles gestuais do que compreender o poema de Letícia.

Colocou um audiobook para tocar na hora de ir embora. Era um conto erótico que tinha descrições que quase a ruborizavam. Quase. Amanda já tinha lido muita coisa +18. O enredo era cativante, basicamente falava sobre dominação entre duas mulheres desconhecidas, e a trama tinha umas reviravoltas muito inesperadas, o que a fazia balançar a cabeça de vez em quando, espantada com o que ouvia. Ou a história provocava nela um sorriso, e ela tentava não transparecer naquele gesto a malícia que ali cabia. O metrô estava lotado àquela hora.

Amanda se sentia ao mesmo tempo corajosa e ousada, e aquele era um sentimento constante na sua vida em São Paulo, uma cidade onde as pessoas não têm muito tempo para reparar em você – ou até reparam, mas no centímetro seguinte tem outro, mais esquisito, e aí você já é esquecida. Tudo tranquilo, ninguém não está nem aí para você! É ótimo e libertador em vários níveis.

E era para Amanda tão excitante – ser uma estranha excitada, se sentindo molhada no meio do vagão lotado, ouvindo aquele script louco, aquela teia de elementos interessantes, e descrições bastante detalhistas – que desceu duas estações depois. A estação Paraíso estava uma loucura, quase tanto quanto a Sé, e ela caminhou por entre a massa saboreando as informações que seu cérebro captava: “Mandei que ela abrisse as pernas. Ela tremia, e senti ali certo vacilo, quase um receio em me obedecer. Seria possível?, àquela altura ainda ter que lidar com malcriações e insolência? Dei um tapa na sua bunda, forte, meus dedos arderam no mesmo instante. Sorri satisfeita quando ela gemeu, de dor e prazer, e se abriu, se oferecendo. Não disse um ‘ai’”.

“Oi!”, Amanda ouviu. Se assustou, puxou o fone com força para fora do ouvido. Era uma moça quase da altura dela, tinha um sorriso no rosto. Viu a placa da estação pouco antes de as portas fecharem: São Bento.

Respondeu o cumprimento, se disse surpresa, contou que passou da sua estação e nem notou. A moça sorriu mais ainda, a achou engraçada. Comentou que já a tinha visto antes, sentada na escada do metrô São Joaquim – no sentido oposto ao que se dirigiam naquele momento, na velocidade do trem do metrô. Perguntou se ela estava perdida. Amanda ficou sem graça, não estava esperando aquilo (nada daquilo). Mentiu dizendo que ia visitar uma amiga, achou a pergunta invasiva. Mas ela era uma romântica nata, adorava acreditar que a vida real podia ter aquele toque mágico dos romances. Quem sabe aquilo não tinha acontecido justamente para que se conhecessem?

Desceu na estação seguinte e a Luz é outro local em que há integrações (aqui, com trens da CPTM). Aquela era sua terceira muvuca na última hora. Tudo porque estava com fogo na pepeka. A moça desembarcou também. Quis passar seu contato antes de sumir na multidão. Disse que se chamava Léo. “Léo?”. “Leocácia”, ela disse, suspendendo as duas mãos como quem diz “o que posso fazer?”.

Desapareceu, como mágica, no meio das pessoas que iam e vinham de todos os sentidos. Amanda reembarcou sentido Jabaquara. Não ouviu mais o conto porque agora sua mente fabricava para ela uma nova história. Uma história de amor entre Amanda e Leocácia. “Amanda e Léo”, ela se corrigiu com um sorriso meio bobo.

Se sentia meio levitando quando subiu os poucos degraus da saída da sua estação. A feirinha ali na praça já estava montada, ela se perdeu por alguns instantes sentindo os cheiros e vendo as cores, os movimentos. Se sentia grata por morar naquele bairro, era uma experiência quase intercontinental! Parou numa banquinha e pediu uma guioza. Estava salivando enquanto aguardava, e viu uma silhueta passando por detrás do vapor das panelas japonesas. Voltou, de repente, a ficar em alerta. Ainda havia aquela questão.

Pediu para embalar para viagem, e se programou para caminhar bem rápido – o suficiente para o vento do começo da noite não gelar o seu lanchinho. E quase correu por entre as pessoas na calçada, naquelas ruas com postes de luz com formatos divertidos, que parecia que se acendiam conforme ela avançava, segurando com as mãos sua sacolinha de papel.

Mal abriu a porta e Nhoque a recepcionou cheio de queixas*. Na cabeça de Amanda, seu gato dizia: “Finalmente, puta! Onde você estava? Eu estou morto de fome!”. Era um miau miau miau sem fim. Ela pediu que ele esperasse um pouco, e balançou a cabeça contrariada quando viu seu potinho cheio em cima da pia. “Pô, Nhoque, deixa de ser fresco!”, ela pediu, mas fazendo afagos no bichano, que ainda miava.

Comeu em pé, encostada na pia, e estava só um pouco morno. Ela fingiu que estava ótimo e lambeu até os dedos antes de jogar o papel no lixinho. Foi dali direto para o banho – estava um friozinho propício para uma leitura. Estava debaixo do chuveiro quando alguém se movimentou atrás da cortina de seu quarto.


* Nessas de acharmos que interpretamos nossos bichos, acabamos por acreditar que eles falam o que não nos dizem. Nhoque, longe de ter voz fina, ficou feliz quando a dona finalmente chegou. Assim que abriu a porta ele lhe disse: “Escrava, alguém invadiu o apartamento”. 

Final

O banheiro estava enevoado, algumas gotas já começavam a se desgarrar da bruma produzida pela água quente do chuveiro e uma ou outra ameaçava já escorrer lá do alto, ansiosa pelo chão. A música da caixinha de som ecoava alto entre aquelas paredes apertadas. O espaço era pequeno, a cortina do box quase encostava no vaso, e talvez por isso a acústica ali fosse tão perfeita. Amanda amava seus banhos sonoros! Há dias ouvia, no replay, mais uma vez, mais uma vez, mais uma vez, o mesmo som nessas horas: Cavalier, de James Vincent McMorrow. Miava junto com o som, era back vocal, batia palminhas, estalava os dedos, murmurava, fingia que cantava, assobiava. Era incontrolável o movimento do seu corpo quando tocava essa música! Meio que dançava às vezes, quase se fundia àquele som (era hipnótico!). Um show! Percebeu uma breve interrupção na música, mas aquele era o seu momento, durava longos minutos, seu banho era sua hora sagrada e sequer cogitou pegar o celular para ver do que se tratava. Estava com a mão sobre o peito, sentindo a vibração também ali. “I remember my first love”!

Seu corpo inteiro arrepiava! Foda!

O celular estava logo ali, e durante dez segundos o visor ficou aceso mostrando a notificação: “Sua autora favorita atualizou uma história”. Letícia tinha acabado de postar um conto diferente dos seus textos anteriores, era uma pegada meio de suspense, toda cheia de dedos, de avisos, de cuidadinhos. Se Amanda não estivesse tão entretida no seu banho com certeza teria adorado ser uma das primeiras pessoas a ler!

A história começava num ambiente parecido com aquele, um banheiro enevoado de um banho quente, uma mulher se ensaboando debaixo do chuveiro, cantarolando um som desconhecido por muitos, mas familiar para ela (que se emendava, se repetia num looping viciado). Talvez alguns detalhes, bastante bem descritos na história, eram diferentes aqui e ali – realidade e ficção não eram lá tão semelhantes. Por exemplo, a cor da toalha dobrada em cima do vaso não era igual.

A cena mostrava que havia ali um invasor – uma invasora, na verdade (sexismo achar que só um homem vai te fazer algum mal, te machucar!). Havia uma mulher agora encostada à porta do banheiro, acompanhando o banho de alguém, de certa forma assistindo à cena, quase fundida também a um som e a um momento tão íntimos sem ter sido convidada. Do seu bolso escorregavam algemas. Longe de ser uma tarada ou algo do tipo, aquela era realmente uma grave ameaça para a mulher que se exibia na narrativa enquanto se ensaboava de maneira sexy. O texto deixava ressaltado de alguma maneira (talvez o suspense!) que a pessoa que agora sentia a frieza da maçaneta entre os dedos era um risco para a mulher do chuveiro.

A narrativa seguia contando que a mulher a perseguia há dias – e de várias maneiras, começando na internet. Ficou muito interessada nela depois de, por acaso, ver um comentário seu em uma plataforma de poesia lésbica em que ela escrevia. Era algo relativamente simples, mas também profundo. Fez surgir ali algum interesse, mas de uma forma um pouco bizarra. Se convenceu de que o fato de a leitora comentarista ter como nome um verbo (ainda que no gerúndio) era um sinal (de que, ela não sabia). Começou a acompanhar muitos dos seus passos, mas não somente com base nas suas postagens – isso só mostra o que as pessoas querem que os outros vejam realmente. Mas no mundo virtual há também muitas pegadas evidentes, passíveis e suficientes até mesmo para se traçar o perfil de um personagem de algum livro! Caso alguém queira!

A invasora, que não tinha sido identificada por nenhum nome ou característica que pudesse indicar de quem se tratava, acompanhava as curtidas, os comentários, todos os joinhas distribuídos em variadas redes sociais. Até que isso começou a parecer insuficiente e ela passou a stalkear também na vida real; a seguia na rua, mesmo. Não foi difícil descobrir onde ela morava. As pessoas muitas vezes dão informação até demais, e não sabem para quem. Isso tudo era narrado enquanto era contada também uma ação que estava acontecendo: a mulher entrava devagarzinho no banheiro.

Nesse ponto o texto dava uma breve parada no suspense e comentava algo sobre a língua ser realmente viva e o fato de “stalkear” ter virado um verbo do português brasileiro.

Aí voltava dizendo que a corrente de ar promovida pela abertura da porta despertou a atenção da mulher do chuveiro, que pareceu sair do transe e começou a discutir com um gato imaginário. Quando puxou a cortina um pouquinho é que viu que tinha alguém ali, uma mulher plantada no meio do seu banheiro. Toda vestida de preto, inclusive usando uma máscara, ela tinha uma arma apontada na sua direção (uma pistola, igual nos filmes!). A playlist do banho não se intimidou e recomeçou a música (bem na hora que a mulher do chuveiro gritou! Um timming que só acontece nos contos!).

A mulher teve as mãos algemadas após ser ameaçada e foi forçada a caminhar nua até o quarto (nesse ponto era dito que ela nem conseguiu se preocupar de estar molhando todo o carpete, que ia ficando marcado pelos seus passos quase trôpegos e ensaboados). Quando chegou ao lado da cama ouviu o estalido da coronhada na cabeça e com delay sentiu a pancada na nuca. Levou um susto, mas nem chegou a formular algum pensamento. Desmaiou na mesma hora.

Durante o tempo desacordada foi submetida a uma série de situações que começaram a partir da descrição da pele dos tornozelos sendo mordida pela fricção das cordas que amarravam cada um de seus pés em uma ponta da cama. Os punhos, que tinham pulseiras de pano, ficaram brevemente nus e era nítido o contraste com o restante do seu braço, mais moreno. Foram amarrados de maneira firme, também abertos. Foi então inserido na mulher desmaiada um plug anal. Devagarzinho. Depois foram presos seis clipes nos lábios de sua vagina. Um por um. Três de cada lado (eram pequenos). Pregadores beliscaram seus mamilos, que tiveram que receber estímulo para ficarem durinhos. Foi sua única reação.

Cada ação era feita de maneira bastante calma, quase fria. Tudo era feito, analisado, e descrito enquanto ela filmava o que fazia (se valendo do zoom às vezes). A câmera estava bem perto do seu rosto quando recebeu três tapas fortes, para acordar.

Os breves instantes de lucidez não foram suficientes para perguntar tudo o que queria saber (e o que não queria também). Não conseguiu nem reagir (estava amarrada) quando a mulher apoiou o celular de forma que a gravação não parasse, e enquadrasse seu rosto, e se despiu enquanto falava palavras que para a vítima eram incompreensíveis. Ouvia ao longe seu discurso alertando sobre os perigos da rede, que o mundo que era um lugar perverso, mas ela falava com quem a assistiria depois; falava para a gravação. Era como se ela estivesse contando uma história.

Aí sentou-se nua sobre seu rosto. Estava quente e molhada. Mas longe de ser excitante, era asfixiante para a mulher ali embaixo, que não conseguiu nem relutar. A invasora, em êxtase, conseguiu gozar.

Deixou a mulher daquele jeito, só limpou as evidências de seu rosto. A história terminava com a assassina saindo do apartamento após encerrar o vídeo (que ia direto para a deep web) e roubar o gato da vítima.

Amanda, bem longe da ciência daquela história e ainda em transe no seu banho quente, sentiu de repente uma corrente de ar invadir o banheiro. Se assustou quando viu que não tinha sido Nhoque o responsável por abrir a porta. 


(confira o som: https://www.youtube.com/watch?v=llBOyoaoJWI

 

 

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