Florestinha

Hoje vou te levar para um passeio pela minha florestinha. Ela é encantada, mas só na minha cabeça. Como você vai ver tudo através de mim, ela será encantada para você também.

Antes, algumas informações importantes.

Moro numa cidade que encabeça uma região metropolitana. Aqui é grande, e tem gente para dedéu. E a região onde me escondo (cada vez mais! Nem me reconheço direito no espelho do elevador, de máscara e óculos escuros) é moderninha, tem prédio espelhado, painel de LED de propaganda e o escambau. Tem até uma loja da Porsche.

Pronto, visualizou.

Para chegar à florestinha é preciso vencer algumas barreiras, concretas. É importante dizer: nunca vou só; tenho sempre a companhia de um cãozinho bem gordinho, que perdeu a cintura há muito tempo (ela parece uma paçoca rolha). E, como a dona, minha bolotinha é toda metódica.

Então o rolê começa antes do passeio.

Começa quando coloco o sutiã. Ou o shortinho safado de rolê (porque às vezes saio sem sutiã, liberta, foda-se). Ela percebe a movimentação e já se agita.

Ultimamente essa ordem inverteu um pouco porque chega 11h30, meio-dia, e a bicha começa a chorar e só para quando coloco a coleira e saímos (coloco a coleira nela!rs). Sim, a beleza define o horário do passeio.

Me visto, prendo a coleira, pego a sacolinha, coloco a máscara, seguro a chave, destranco a porta, saio, chamo o elevador, volto, tranco a porta e é o tempo do elevador chegar. Ela me acompanha em cada passo. Falei que é metódica também.

O primeiro xixi é na graminha em frente ao prédio. Sempre na do lado esquerdo, mas às vezes ela brisa e vai na da direita. Precisa enterrar o xixi, e ela é bem dedicada nessa hora. Uma vez se empolgou e chutou a lampinha que enfeita o “jardim” (que é só grama, incrível como nada brota ali). Quebrou, me fiz de sonsa.

Minha cãzinha vai sempre caminhando do meu lado direito, eu vou do lado da rua. É uma avenida movimentada, tem três faixas, o limite é 60km/h. Mas tem um cruzamento com semáforo logo à frente, então a movimentação é aquela de quando começa a diminuir a velocidade. Perigoso mesmo assim. Atravessamos sempre transversalmente, sempre no mesmo local. Porque é mais fácil, é linha reta. Na esquina tem um lixo que está sempre derretido, queimado.

Não sei, não entendo certos vandalismos.

Um pouco mais à frente a madame para para comer graminha. Todo. Dia. É um jardinzinho bem safado em frente a um prédio onde um cachorrinho na varanda fica sempre latindo. Passado, aposto. Tem uma planta ali muito bonita, cheia de florezinhas coloridas (onde predomina o rosa – o bem clarinho e o escuro). Às vezes essa planta fica com sede, e fica caída, dá dó. Mas é o tempo de ir e voltar, e na volta ela está molhadinha, toda empinadinha, feliz.

Já contei que tenho tara por planta molhada, né.

No prédio seguinte, alguns poucos passos adiante, é onde a bonita faz cocô. Uma vez eu estava lá, toda espichada, pegando aquele dejeto quente, uma pessoa passou e disse “essa é a parte ruim de sair, né, tem que catar cocô”, e eu fiquei “ué”. Cato em casa também. Ali é ainda mais prático, porque o lixo fica bem na frente.

Esse é o local #1 do cocô. Pera que já vem o #2.

Antes de chegar na esquina, onde tem um posto de gasolina, ela agora deu para querer colo. E vou eu com a gorda pesando mil quilos, no colinho, até a outra ponta. Não reclamo (muito) porque atravessar ali é complicado. A faixa de pedestres se foi faz tempo, e recentemente fizeram uma nova, do outro lado, que indica que para atravessar aquele trecho precisa quase fazer um caminho de pac-man. Não faço.

Na outra calçada a coloco no chão. Ela adora, embaixo daquela ponte se revezam grupos de moradores de rua, tem sempre um monte de coisa jogada, vários lixos, nem imagino os cheiros que ela sente. E ela vai que nem aspirador. No semáforo à frente sempre tem uma galera pedindo coisa. Tem um cara que sempre faz questão de me cumprimentar quando me vê (“e aí, da tattoo!”), e eu sempre quero fazer um gesto de paz e amor, ou um hang loose, e sempre sai um joinha. Igual tiozão.

Mais à frente tem um Mc Donalds. Sou vegetariana desde 2016, mas o cheiro lembra minha infância, e aí acaba que sempre respiro fundo quando caminho ali. Atravesso na faixa, junto de um sinal de pedestres que me faz pensar na sua funcionalidade, toda vez. Funciona, mas demora. Tenho uma história que um dia vou escrever que envolve um sinal de pedestres. Nessa hora sempre escrevo um pouquinho no meu caderno mental.

A gente fica parada ali uns dois minutos, em média. É sempre movimentado, a galera aqui não respeitou muito o isolamento, e nem parece que a cidade ainda está na faixa vermelha de coronavírus. Acho triste (tanto que esse passeio, que era diário, é escasso nos dias atuais).

Esse cruzamento tem cheiro de jaula de macaco. Há um quase zoológico ali para cima, e dependendo da direção do vento o odor é mais ou menos intenso.

Quando era criança (eu morava a duas cidades de distância), e vinha passear num shopping aqui, na volta para casa quando a gente passava nessa ponte, em cima desse Mc Donalds, eu sentia uma alegria que não sabia explicar. Hoje sei: eu acessava a pessoa que sou hoje. Sempre soube que moraria aqui! Mesmo sem saber!

Se o sinal verde com o homenzinho andando demora, há um intervalo entre fechar o semáforo de cima e abrir o de baixo, e se correr, dá tempo de atravessar. Só tem que cuidar com os motoqueiros, que nunca respeitam o vermelho dos semáforos. E ainda buzinam, zangados. É muita ousadia. Eu não xingo mais porque estou evoluindo.

Atravessamos. E chegamos na primeira parte da primeira florestinha. Vem, são duas.

Florestinha 1

Parece uma pracinha. Ou uma ilha: uma avenida aqui, uma avenida ali, outra avenida acolá (de verdade, são três), e um córrego. Eu chamo de “corgo”. Ele tem um cheiro bem característico. No meio desse espaço, que é cimento, mas tem grama, tem um arbustinho que me deixa sempre esperta. Uma vez a bola se enfiou ali e saiu cheia de carrapichos. Como ela tem os pelo tudo doido (bagunçado igual o meu cabelo – e na mesma cor! A gente parece mamãe e filhinha), fiquei um tempão tirando os tais dos “picão”.

Nesse ponto eu afrouxo a coleira, mas ela nem corre. A gente anda de ladinho, é muito gostoso.

Ali parece a cabeceira do córrego, mas a verdade é que ele passa por baixo de todo aquele trânsito, e volta a aparecer mais acima, onde sempre transborda quando chove mais forte. É comum, houve casos que esperei para sair ou voltar para casa. Fica intransitável até para caminhão. Teve uma vez que gravei e postei nos stories do Instagram. Bem na hora passou, sei lá, uma geladeira boiando, e saiu minha voz dizendo “Meu Deus”, passada. Depois ficou engraçado.

A gente caminha na contramão dos carros. Há a opção de ir por dentro, ou beirando a florestinha. Em geral vamos por fora. Dentro é lindo, magnífico, mas tem lobo mau. Os caras fazem fogueira, fumam crack, acho tenso. Por fora também tem os seus encantos.

Logo quando o caminho fica bem estreito, e os carros passam bem do lado, a gorducha às vezes faz cocô. É o lugar #2. Ela gosta de me ver pegar suas obras quando tenho bastante audiência. Eu não me importo, mas ali é ruim porque o lixo fica só na outra florestinha. É bastante chão andando com cocô na mão.

A primeira florestinha, lado A (a ida), é linda. Se você passa ali de manhã, quando o sol está batendo num prédio espelhado azul, aquela luz artificial ilumina exatamente uma árvore que entre a primavera e o outono fica carregada de florezinhas branquinhas, e elas brilham tão lindamente! Parece casinha de fada! As flores parecem fadinhas! E fica emoldurado pela luz, é demais.

As árvores ali estão quase todas de sainha. Elas têm uma planta que nasce na base e vai subindo pelo tronco. São árvores bailarinas. Eu as vejo dançando ao som da natureza. Quase danço junto. Paro para admirar, sinto vontade de aplaudir.

No inverno, depois que as folhas caem, andar ali é gostoso porque a catiora vai andando igual um trenzinho: tchoc, tchoc, tchoc, tchoc, caminhando em cima das folhas secas. A florestinha acaba debaixo de um enorme painel de LED que ilumina até quando está sol. Tem uma árvore, magnífica, exatamente na esquina, onde a gente espera o semáforo abrir. De vez em quando ela é podada, mesmo assim está sempre com os galhos quase encostando no chão.

É impressionante a energia que tem ali dentro!

Os galhos são todos trançados. Chega a ficar escurinho. E tem exatamente a circunferência da árvore, que tem o tronco muito grosso. Mentalmente já fiz altos piqueniques ali embaixo!

Quando o semáforo fecha para os carros que estão vindo contrariamente, abre o outro, que libera os carros que sobem e descem a avenida em frente. São dois tempos: primeiro abre para quem sobe e desce. Aí fecha na descida e abre para os que vão virar. Quando fica vermelho, abre o de lá, e nem todos ligam seta, então é momento de atenção. Mas a gente é ligeira.

O desafio de atravessar a rua vale à pena: na calçada de lá começa a segunda florestinha, a mais linda das duas.

Florestinha 2

Gosto de passear nessa florestinha durante o dia porque o sol que bate na grama faz o verde parecer neon. Meu coração dá uns pulos, eu juro, de emoção em ver aquilo. A descidinha é feita de pedras, e desemboca numa daquelas academias para terceira idade. Ali tem um lixo.

O trajeto, cimentado, tem o corgo à direita e a avenida (sentido centro) à esquerda. Matos margeiam ambos os lados. Tem um formigueiro gigantesco, logo no começo. A gente desvia, eu gosto de formigas (em especial assim, fora da minha casa). São muitas árvores, e elas fazem um tunelzinho. É bem fresco ali. Em horários incomuns, quando está vazio, é nesse trecho que tiro a máscara por uns instantes. O cheiro é bem fresco – de água e árvore, de mato e terra.

Sempre vejo uns passarinhos diferentes. Tem um, bem pretinho e pequeninho, que é muito lindinho. Se movimenta parece que dando pulinho. Outro, grande, tem um bico enorme, pontudo, sempre vejo no mínimo três deles (acho curioso, um número ímpar). Os sons são muito variados. Tem barulho de grilo e sapo também, mais audíveis quando é noite.

As flores são um show à parte. A natureza é tão incrível que têm umas que já são lindas, e ela foi lá, não satisfeita, e embelezou mais. Tem uma flor rosa, com as pétalas moles, rajada de branco, que parece peludinha. Linda, um arraso. A natureza enfiou no meio dela uma florzinha amarelinha, que parece uma estrelinha, que me choca sempre. É muito linda! Tem outra, amarela também, bem pequenininha, que é muito lindinha, parece uma xoxotinha! Amo! Tem o formatinho que a minha mente pervertida sempre me faz sorrir, maliciosamente.

A florestinha é encantada porque não é visível para todos que passam por ali. Mas é melhor do que a roupa do rei porque para enxergá-la basta querer (não exige esperteza. Ou exige?)! O fato é que muitos motoristas passam ali alheios àquela vida toda. Não os culpo; tenho também as minhas traves.

Próximo ao fim da primeira parte desse delicioso trajeto há um parquinho com brinquedos enferrujados à esquerda que às vezes o balanço (só um, dos três) está se mexendo sozinho. Um pouco mais adiante tem um conjunto de mesas e bancos de cimento, sempre vazios. A gente faz a curva em cima da ponte do corgo. É a metade do trajeto. Já mapeei o rolê e nesse ponto é bem quando dá 1km.

Do lado de lá os carros agora vão no sentido bairro. Mas ainda estão contrário a nós, que nesse ponto estamos lá embaixo em relação a eles. Um barranco nos separa do trânsito. É até mais quieto. O sol bate mais forte ali porque as árvores são mais espaçadas. E elas são enormes, nem consigo mensurar há quanto tempo estão naquele local.

Uma me chama a atenção, sempre. Ela parece uma mão, vista de longe, os galhos se abrem como se o tronco fosse o punho. É magnífica, gigante! Ela é careca, quase branca, parece que me chama sempre. E eu cedo, me rendo. Porque é difícil recusar esse magnetismo todo!

Abraçar essa árvore me proporciona uma experiência única (é diferente de todas as outras). Quando a sinto, me conecto a ela de uma forma que não sei explicar. Parece que tudo gira, parece que o mundo roda. Eu entro nela, e ela entra em mim, e a gente se funde, e por breves momentos nós somos parte de tudo, é muito forte. É muito intenso.

Para você ter ideia da conexão que rola ali, minha cachorrinha fica quietinha enquanto acontece toda essa magia. Ela espera, e olha que em geral ela não curte ficar parada!

Dois passos depois da minha amiga tem uma pontinha, minúscula, lindinha, onde por baixo escapa um fio d’água cheio de girino. A água parece até que mexe. Ela vem não sei de onde, e escorre para o córrego. No fim da pontinha, à esquerda, tem um laguinho cheio de carpas!

Quem colocou esses peixes lá?!

Eles são laranja, e branco, e vermelho. E são grandes! Nadam balançando a raba, parecem modelos de passarela.

Não dá para seguir reto (a ribanceira é alta), então a gente faz uma curvinha à direita, passa por cima de outra ponte por cima do corgo (mas nem dá para ver aquela outra!), sobe na trilha feita pelos nossos pés e patas, e chega de volta na academia da terceira idade.

Na bifurcação pegamos o caminho da esquerda. A gente atravessa sempre no meio da avenida, sempre correndinho. Aquela calçada lá é o lado B da primeira florestinha. Tem um caminho de cimento, um quadrado com um hidrante, onde sempre tem lixo, e gente. É triste. Mais para cima tem um arbusto da planta costela de adão, a conhecida Monstera, que é linda demais. Ainda tatuo uma folha dessas na costela!

Um outro laguinho se destaca ali embaixo. Há vitórias-régias nele!

A gente quase não admira essa parte porque a loucona sempre quer atravessar ali. Se passa o Burguer King e a gente ainda está daquele lado da avenida ela fica maluca!

Eu cedo aos seus caprichos porque é ela quem me leva nesse passeio, não o contrário. Em partes, é graças a ela que vejo a magia! Por consequência, graças a esse bicho despenteado e gordo agora você conhece esse lugar também!

 

Obs.: Sei que a palavra “cã” não existe, mas a minha cãzinha não entende de regras ortográficas, então está tudo bem.


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